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a tentação de um autorretrato – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Out 22, 2023

“Cada história individual é duplicada pela sua história fotográfica, feita imagem, imaginada. Mas que direito terei de açambarcar essas outras imagens, as imagens dos outros, os positivos? Elas passam pela minha história, esbarram contra ela e por vezes instalam-se nela, mas nunca serão minhas”: quando escreveu estas palavras, o escritor e crítico francês Hervé Guibert não imaginava que quase uma década depois viria a morrer, aos 36 anos, somente três depois de ser sido diagnosticado como seropositivo, e que a sua imagem seria o rosto de uma epidemia que também nessa altura assolava a Europa. No entanto, eram estas mesmas frases que materializavam um pensamento sobre a fotografia, meio que mapeia o seu percurso, que o trespassa e com ele se cruza, entre a memória e os desejos íntimos. Quando se propôs a escrever um livro de fotografia, fê-lo de forma singular: usou-a para falar da vida, dos laços familiares e de amizade, das experiências emocionais e subjetivas, que são em boa verdade, um diário íntimo que o revela perante a sociedade.

Publicado pela última vez em Portugal há mais de 30 anos, chegamos por fim à sua faceta de ensaísta, com A Imagem Fantasma, título que era inédito em Portugal, levado à estampa originalmente em 1981. Constituído por sessenta e quatro breves ensaios, Hervé Guibert recorre neste livro à memória e à fantasia, reflete acerca da fotografia e da sua experiência pessoal como artista e não só. O reconhecido crítico de fotografia do jornal Le Monde, função que manteve entre 1977 e 1985, relata os seus antecedentes fotográficos: as suas primeiras imagens eróticas (algumas pornográficas), uma sessão fotográfica com a sua mãe cuja imagem nunca seria revelada, a lenta degradação de uma fotografia de um amigo condenado, imagens fantasmagóricas ou cancerosas, íntimas até à invisibilidade. Tal como o tradutor Amândio Reis escreve no prefácio, não se trata de uma teoria de imagem, mas sim um leque de textos eminentemente teóricos que nos obrigam a “reconhecer a sua dupla valência enquanto história da fotografia na segunda metade do século XX, tal como vista pelos olhos de um cidadão francês de classe média na segunda metade do século XX, tal como contada pela fotografia”.

Semiautobiográfica, a obra aproxima-se nalguns dos seus princípios, de uma outra publicada um ano antes: A Câmara Clara de Roland Barthes. Seguem, no entanto, caminhos distintos, sobretudo pela forma como Guibert envolve o retrato de família e o de amigos, o mote de desejo e de morte, a Polaroid e o photomaton, a fotografia de polícia e a de viagem, e, por fim, o fantasma de todas as fotografias que ficaram por fazer. A sua narrativa oscila constantemente entre a imagem de família e a imagem de amor, os dois polos necessários nesta efabulatória equação, que fazem deste livro singular um quase romance-ensaio em livre construção. Com vestígios e ecos da escrita de Jean Genet e temas recorrentes que remetem para o trabalho de artistas contemporâneos, Guibert extravasa os vários meios de expressão. Por isso mesmo A Imagem Fantasma é uma ode melancólica e belamente escrita à existência e a formas de arte tão fugazes quanto poderosas. É, neste caso, a sua forma de superação através da arte.

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