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Os cafres do séc. XXI da União Europeia – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Out 29, 2023

Decorridos quase 50 anos do Antigo Regime e 37 anos da entrada na União Europeia, Portugal mantém substancialmente na vida económica, e política, em muitos sectores da Administração Publica e, na sua super-estrutura sociológica o atraso que então nos caraterizava.

Em 1974 éramos um país pobre e subdesenvolvido. O analfabetismo era geral, o desenvolvimento industrial dava os primeiros passos para se libertar das amarras de décadas, e o sistema financeiro em busca de um farol. As localidades sem electricidade e água potável eram às dezenas, algumas a escassos quilómetros da capital.

A Administração Pública, não obstante a exigência no recrutamento e uma boa formação técnica, era um exemplo de falta de racionalidade e burocracia, onde o cidadão comum enfrentava inúmeras dificuldades para resolver os seus problemas com os serviços públicos.

Infelizmente se nos compararmos com a generalidade dos países da Europa e outros países desenvolvidos de outros continentes, a evolução ocorrida até hoje não nos permite ficar orgulhosos.

Neste curto texto, não irei referir os temas da ordem do dia, como a saúde, a educação, a pobreza,e habitação, porque não há jornal, nem telejornal, nem comentador, nem rede social que não faça da sua abordagem paradigma.

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Irei abordar apenas o (mau, muito mau) funcionamento dos serviços da Administração Pública, em particular no seu (não) contacto com os utentes, na forma como exercem a sua actividade, no tempo que demoram para alcançar os seus objectivos e na resolução final dos processos que lhes são submetidos.

E mesmo com esta reserva de âmbito, limitar-me-ei à Conservatória dos Registos Centrais (CRC), Serviços de Estrangeiros e Fronteiras (em extinção) e aos chamados Serviços de Apoio ao cidadão.

Desempenhei funções elevadas na Administração Publica em Portugal e no então Território de Macau, onde há varias décadas sou advogada. Apesar disso por razões afectivas e profissionais, nunca perdi a minha ligação intensa a Portugal, aonde me desloco assiduamente.

Há algumas décadas atrás, participei activamente numa comissão de modernização e simplificação dos actos administrativos, criada então pelo Ministro da Justiça de um governo socialista que levou o seu propósito a bom termo, tendo proposto e sido aprovados diversos diplomas legais que aliviaram uma grande parte da sobrecarga burocrática, facilitando a vida dos cidadãos no trato com a Administração Publica e nas relações comerciais em geral.

No âmbito da actividade profissional que desempenhei em Macau, tenho tido ao longo de dezenas de anos como advogada, contactos frequentes com diversos serviços públicos, em Portugal de que pretendo destacar a CRC, e tenho testemunhado a degradação progressiva, através de atrasos inaceitáveis e outras deficiências a que me irei referir, e que no conjunto me permitem afirmar que a minha vida e dos meus colegas e a dos cidadãos que com ela têm de privar vivem um verdadeiro inferno.

Não há palavras que possam descrever dinamicamente o que por ali se está a passar.

A saudável e frutífera relação entre utente /representante com os funcionários existente no passado desapareceu quase na totalidade.

Hoje, substancialmente diferente do período anterior à pandemia Covid 19, aceder pessoalmente à CRC só é viável para quem tem a alquimia de conseguir uma senha de acesso para esse efeito. Parece simples mas não é. Ou se consegue após dezenas de horas, ao telefone ao longo de muitos dias de tentativas, ou se ingressa numa fila que começa desalinhadamente a desenhar-se às 5/6 horas da madrugada e a partir das nove logrou-se a façanha de beneficiar dela, o que a maior parte das vezes implica repetir este esforço por dias a fio.

Para conseguir a desejada senha de acesso, a fisionomia da Rua Rodrigo da Fonseca em várias centenas de metros ao redor da CRC é uma triste manifestação de subdesenvolvimento, dando mais a aparência de uma zona de pedintes, sem abrigo, vendilhões (com o respeito que me merecem) ou de um qualquer mercado numa aldeia algures num país de África.

Os potenciais utentes acumulam-se de pé, de cócoras, ou deitados desde alta madrugada para às 9 horas tentarem o privilégio de serem atendidos por um funcionário publico, que está ao serviço também para isso e por causa disso.

As relações entre a CRC e os utentes ou seus advogados transformarem-se numa luta entre David e Golias.

O contacto pessoal que permitiria esclarecer, suprir pequenas deficiências ou demonstrar que o iter da CRC não é o mais adequado é evitado a todo o custo, e relegado para a via escrita que, em muitíssimos, casos demora muitos meses, tendo como consequência o retorno do processo pendente há dois ou mais anos à data em que foi submetido.

Convicta que a troca de ideias, o diálogo e os conhecimentos profundos que também tenho dos problemas que a CRC enfrenta, tentei, através de e-mail obtido por portas e travessas(porque não é público)expor junto do IRN e da CRC, alguns deles e solicitar uma reunião para lhes referir alguma das más razões pelas quais, em minha opinião, muitos dos processos se arrastam por vários anos. A Senhora presidente do Instituto dos Registos e Notariado e a Senhora Conservadora Geral dos Registos Centrais nem sequer me responderam.

Medo? De quê? Quem não deve, não teme. Falta de tempo? É pena.

Infelizmente não sabem aqueles ilustríssimos funcionários que um bom serventuário do Estado aprende com o contacto com o outro lado do balcão.

A troca de ideias, a discussão de problemas e soluções possíveis, e o dialogo trazem experiencia de vida e garantem o progresso, a desburocratização, a agilidade e uma Administração Publica mais eficiente.

Mas os episódios repetem-se, e repelir os administrados para mais longe passou a ser a regra, como eloquentemente o demonstra o balcão acrílico implementado por causa do Covid 19, que por lá ainda se mantém, tornando o diálogo até fisicamente mais difícil quando não impossível dado o tom de voz que tem de ser usado.

A este propósito é pertinente referir que todos os mecanismos, então implantados de que este é um caricato exemplo, como o trabalho à distância, o atendimento por senha ou por marcação prévia telefónica, sendo expedientes usados para evitar a contaminação do Covid 19, hoje impedem que possamos progredir e ficar mais eficientes e muito mais rápidos. Esses expedientes fizeram-nos recuar enormemente sendo que muitos processos, quiçá a sua maioria, passaram a demorar vários anos, em vez de um ou alguns meses. Um registo de nascimento de um menor consome no mínimo seis meses (!)e o de um maior cerca de um ano frequentemente.

A mediocridade e total ineficácia do sistema tem causas duradouras profundas e recentes. Mas tem solução.

Desde logo o pleno conhecimento da situação e a vontade firme de a resolver.

Já alguma vez o sr. Ministro, no caso a sra. Ministra ou um dos seus Secretários de Estado ou mesmo chefe de Gabinete se deslocaram á CRC?

Veriam que também o desalento e tristeza se apodera dos funcionários que trabalham empenhados e afincadamente mas não conseguem mostrar resultados.

Veriam também que muitos dos problemas resultam da falta de organização e de ignorância, de divergências de opinião e ou da deficiência legal ou flutuação de instruções superiores.

Eu vou à CRC e tenho contactado com muitos desses funcionários e aqui incluo sempre os senhores e senhoras conservadoras e vejo o enorme esforço e a vontade que os mobilizam, assoberbados de processos, trabalhando horas a fio, muitas vezes para além do seu horário normal, mas o resultado não é visível. Sempre disponíveis para ajudar na busca de soluções e em imprimir velocidade ao trabalho mas o inadequado sistema hierárquico e organizacional trava-lhes o ímpeto. Quem os compensa da sua abnegada dedicação? Quem pensa no fosso entre a remuneração que ganham e a que deviam ganhar? e na falta óbvia de funcionários?

Sei que o diagnostico é mais fácil do que a posologia. Mas já testemunhei serviços públicos caóticos que também serviam centenas de milhares de pessoas e tinham pendentes muitas dezenas de milhar de processos cujo funcionamento se tornou razoavelmente aceitável e às vezes até modelar.

O actual Governo tem sido, sobretudo nos últimos anos, incapaz de acudir ao estado calamitoso do funcionamento dos serviços e à fuga de funcionários por múltiplos motivos.

Paradoxalmente há falta de reconhecimento do enorme esforço que esses funcionários, despendem, há falta de motivação, há ausência da reforma das carreiras, há falta de pessoal e há um tratamento desigualitário consequência de se tratar por igual o desigual.

É reprovável que o Governo que valoriza nas suas preocupações a TAP, os Bancos a localização do aeroporto considere uma minudência o péssimo funcionamento dos serviços que devia prestar á população bem e a tempo e horas, asfixiando-a num inferno de burocracia desnecessária, em contraste com a excêntrica narrativa mil vezes repetida de que uma das suas preocupações é facilitar a vida dos cidadãos.

O funcionamento da CRC, SEF e Apoio ao Cidadão estão em coma e é urgente vir em seu socorro e abandonarmos o triste subdesenvolvimento que vivemos.

Mas o socorro pode ser prestado por fases. O óptimo é inimigo do bom. É urgente que, a curto prazo, sejam tomadas já algumas medidas de emergência e estas num dialogo com os intervenientes, não são difíceis de imaginar nem de executar.



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