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O meio da ponte – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Nov 7, 2023

Em Da Direita à Esquerda, António Araújo escreveu que «[p]revalece, seja na esquerda, seja numa parte substancial da direita, a ideia de que a ideologia popular é tendencialmente «atrasada», «básica», «arcaica». (…) Por muito que isso custe às vanguardas, o povo está aos domingos nos hipermercados, a fazer compras, e informa-se através do Correio da Manhã ou do Record, diverte-se – e sofre – nos estádios de futebol, caminha até Fátima em horas de aflição, enterra os mortos com o conforto dos sacramentos, sonha em ter a vida das estrelas da Lux ou da Nova Gente, discute a fortuna e a vida sexual de CR7, acompanha com fervor e brio as novelas da TVI e, para horror das elites, é, ele próprio, protagonista da “neotelevisão”».

O apontamento de Araújo regressou-me à memória depois de ter lido As três mortes de Lucas Andrade, romance de estreia de Henrique Raposo, um livro que me aguçou outro tipo de recordações, mais pessoais, e que, até certo ponto, funcionou para mim como um espelho – e que, de alguma maneira, confirma a tendência de que há um lado silencioso da sociedade portuguesa que começa a ter relevância literária através de algumas vozes (Raposo, Bruno Vieira Amaral, Djaimila Pereira de Almeida), mas que não tem peso político e mediático.

O ponto é simples: às portas de Lisboa, para norte e para sul, há uma multidão em movimento que é, ao mesmo tempo, política e mediaticamente de um silêncio esmagador. São milhões de pessoas sem rosto, de que ouvimos falar nas rádios todas as manhãs através das notícias do trânsito, que enchem as estradas, os barcos, os comboios e os autocarros, e desaguam em Lisboa diariamente, e que são normalmente notícia pela desgraça – a única altura em que os indivíduos ganham um rosto, um nome e um corpo, regra geral depois de um esfaqueamento, um homicídio, uma esquadra assaltada, centros de saúde que não funcionam ou escolas sem condições. No fundo, mantém-se o retrato das cheias de 1967, quando os meninos de Lisboa, cheios de revolução nos sonhos e socialismo no coração, descobriram que a miséria mais profunda vivia ali, paredes meias com o seu conforto, e que era dali que vinham as suas empregadas, não raras vezes violadas pelo chefe da casa ou pelo menino, coitadinho, que não podia casar virgem. Foi ali que eu cresci, foi dali que eu vim, do seio de uma família modernamente monoparental, suburbana e pós-rural, oriunda do sopé de uma serra perdida, onde os garotos andavam descalços, as mulheres urinavam nos regatos, todos sob a força do império masculino imposto pela força bruta.

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