Duas semanas e meia depois, nada nem ninguém poderia ser surpreendido pelo que quer que fosse. Nada nem ninguém poderia ficar surpreendido se o Dragão Arena tivesse uma afluência tão grande ou maior do que aconteceu a 13 de novembro na Assembleia Geral Extraordinária para votação das propostas de alteração estatutária, da mesma forma como nada nem ninguém poderia ficar surpreendido se o número de associados fosse bem menor depois dos episódios de agressões e intimidação registados dentro e fora do recinto. Nada nem ninguém poderia também ficar surpreendido se existissem pequenos focos de maior tensão. E nada nem ninguém poderia ainda ficar surpreendido se nem todas as intervenções fossem apenas para elogiar Pinto da Costa. No entanto, e apesar de tudo isso, nada nem ninguém poderia saber o que esperar agora.
Logo à partida, houve algo que mudou: em vez de haver aquela sucessão de afirmações e de pedidos que aumentavam a expetativa da reunião magna, neste caso marcada para votação do Relatório e Contas do clube no exercício de 2022/23 que terminou com um prejuízo de 2,4 milhões de euros, todos os intervenientes que foram falando apelaram à serenidade. Um dos principais exemplos disso mesmo foi Fernando Madureira, líder dos Super Dragões. “Espero que seja uma Assembleia tranquila e sem os erros que foram cometidos na anterior. O FC Porto merece que nós, sócios do clube, nos saibamos comportar. Passei uma mensagem à claque para ter um comportamento diferente, não se pode cometer os mesmos erros da anterior Assembleia”, apontou ao JN. Já André Villas-Boas, ao contrário do que aconteceu na antecâmara da reunião de dia 13, não fez qualquer declaração ou comunicação pública (não se sabendo sequer se estaria presente).
Em apenas duas semanas e meia, muito mudou. Foi aberto um inquérito interno para apurar quem tinham sido os responsáveis pelas agressões no Dragão Arena (a par do inquérito que decorre no Ministério Público), o Conselho Superior do FC Porto decidiu também cancelar nova submissão a Assembleia Geral das propostas de alteração dos estatutos, Pinto da Costa deu uma entrevista à SIC onde comentou tudo o que se passou no Pavilhão dos azuis e brancos e “respondeu” às críticas do atual estado das contas dos dragões, houve também um novo episódio de desacatos à porta da moradia de Villas-Boas com um segurança agredido e roubado que levou o antigo treinador a deixar nova mensagem de repúdio pelo sucedido e, já esta quarta-feira, a notícia de que Fernando Gomes teria viajado até à Arábia Saudita para tentar antecipar receitas de Otávio.
No final sobraram quatro pontos fundamentais ao longo de quatro horas: 1) tudo decorreu com normalidade, num ambiente que pouco ou nada teve a ver com o que se passou há duas semanas e meia, sendo que a afluência à reunião magna foi também inferior, não superando os 900 associados; 2) as contas acabaram por ser aprovadas mas por um valor bem abaixo do que era normal, sendo de destacar as muitas abstenções que foram contabilizadas (198, contra 434 a favor e 187 contra); 3) a reunião magna decorreu sobretudo em torno de Villas-Boas, pelo discurso que teve a maior ovação da noite e pelas palavras críticas que se seguiram para o antigo treinador; 4) os próximos meses até abril irão confirmar aquilo que é uma mudança de paradigma no FC Porto, com um clima pré-eleitoral latente que ficou estabelecido de vez mas que não impediu que a parte final da reunião magna ficasse marcada sobretudo pelo apoio a Pinto da Costa.
Como já é habitual em todas as Assembleias Gerais de qualquer clube, só na segunda chamada começaram os trabalhos, neste caso com José Lourenço Pinto, presidente da Mesa, a dar início pouco depois das 21h30. Os órgãos sociais do FC Porto já se encontravam nos respetivos lugares do Dragão Arena, que desta vez tinha cadeiras também no próprio recinto e não apenas nas bancadas como tinha acontecido no dia 13. Apesar de um aparato policial bem mais visível nas imediações do recinto (não no interior), o ambiente foi bem mais calmo, as entradas foram acontecendo de forma ordeira também devido à menor afluência em comparação com a Assembleia Geral Extraordinária há duas semanas e meia e já com nomes como André Villas-Boas, José Fernando Rio, Nuno Lobo, Fernando Madureira ou Angelino Ferreira presentes.
“Peço em consciência para dar uma ideia do que somos, somos Porto. Todos tem direito à critica, todos têm direito a concordar ou não. Todos têm direito a expressar-se. Que o façam com respeito. Aqui todos somos críticos e sempre o fomos e dissemos na AG o que nos vai na alma. Não podemos ser humilhados. Peço a todos que respeitem os outros. Estejam ou não de acordo, peço que respeitem e vamos fazer esta Assembleia Geral como gosto: concorrida e com lealdade, que no final haja um vencedor e que seja o nosso FC Porto”, disse Lourenço Pinto no arranque, citado pelo jornal O Jogo, antes da explicação das contas feitas pelo clube.
Fernando Gomes, vice-presidente do FC Porto e administrador da SAD, usou da palavra para abordar vários pontos, inclusivamente uma polémica que nasceu e começou a crescer nas redes sociais em relação a uma comparação de receita de bilhética com o Sporting que teria o dobro dos dragões, algo explicado de pronto pelo dirigente com a divisão que os azuis e brancos fazem nesse aspeto em relação a tudo o que envolva os camarotes e os lugares VIP, que surgem na publicidade e não na bilhética. “O FC Porto tem 19,2 milhões no total da bilheteira se não fosse essa separação”, argumentou. Antes, abordara a questão dos capitais próprios negativos que serão corrigidos até ao final do ano, dando mais alguns detalhes dos acordos feitos com a Legends e com o tal “peso-pesado” referido em entrevista que deverá ser a Sixth Street.
“Este ano não tem significado para a avaliação as contas de 30 de junho, mas sim a 31 de dezembro. Quem tivesse capitais próprios negativos teria de apresentar uma melhoria de pelo menos 10%. Por isso, não valia estar a correr para ter um resultado mais positivo a 30 de junho porque os efeitos não contam para controlo de fair play nem da nossa gestão financeira. Ter capitais próprios negativos não é uma coisa boa. É má, dá uma má imagem do clube, mas não nunca constituiu qualquer impedimento para o FC Porto. O nosso objetivo é de quem sejam positivos. Por isso a administração está a procurar soluções. Queremos ter contas saudáveis e que não prejudiquem a atividade desportiva do clube. Os gastos operacionais aumentaram mas os proveitos operacionais aumentaram mais. A realidade económica tem de melhorar substancialmente, está cada vez mais forte e foi motivo para uma grande empresa multinacional fizesse uma parceria para potenciar ainda mais os resultados da Porto Comercial”, adiantou, falando pela primeira vez de uma alienação de 30% da Porto Comercial ao parceiro que voltou a não nomear mas que tudo indica que deverá ser a Sixth Street.
Fernando Gomes voltou a explicar ao detalhe o porquê da saída de Otávio já depois do final do exercício para a SAD receber mais 20 milhões pelo jogador, visando depois as críticas feitas no universo azul e branco pelos prémios atribuídos à administração. “São regras que estão estabelecidas. A execução de um Campeonato só se faz no ano seguinte. Ser campeão nacional tem consequências, como ir à Liga dos Campeões, mas se um clube tiver problemas financeiros já não participa na UEFA, daí que esteja determinado que o pagamento dos prémios seja só no ano seguinte. O que diz a Comissão de Vencimentos? Num ano em que o FC Porto seja campeão, vá à Champions e tenha resultados positivos nas contas, a administração receberá um prémio. Jogadores e treinadores recebem o que está determinado nos contratos. Foi uma situação excecional, mas podem ter a certeza que, no próximo ano, a administração não terá prémio nenhum”, garantiu, num discurso que foi tendo alguns aplausos mas que não reuniu o interesse de outros que se seguiriam.
Apesar de não se terem registado situações de agressões, insultos ou tensões como no dia 13, a parte dos discursos acabou por abrir a tal discussão sã entre associados, neste caso entre André Villas-Boas e quem é a seu favor e nomes como Fernando Madureira ou Henrique Ramos, associado que sofreu as agressões que suspenderam a última reunião magna, que visaram o antigo treinador de diferentes modos.
“Gostava de iniciar a minha intervenção com a citação de um dos membros da Direção aqui presentes. Passo a citar: ‘A sustentabilidade do negócio do futebol não é fácil e sofre de imponderáveis vários, mas o FC Porto criou um modelo de negócio e procura atenuar efeitos da recessão económica, da crescente dificuldade do acesso ao crédito e preparar o clube para o futuro e para as imposições da UEFA relacionadas com o fair play financeiro. Estamos preparados, porque sem abdicar da razão de existirmos, que é a conquista de troféus desportivos, soubemos sempre resistir à tentação de nos afundar em dívidas.’ Em 2011 a dívida financeira do FC Porto era de 98 milhões de euros e o passivo total de 202 milhões de euros; 12 anos depois, a dívida financeira do FC Porto é de 311 milhões de euros e o passivo total de 499 milhões de euros. Hoje os capitais próprios atribuíveis aos sócios são negativos em 199 milhões de euros. Desde 2011, a administração do FC Porto recebeu mais de 27 milhões em remuneração fixa e variável, sem considerarmos as ajudas de custo entre viaturas, combustíveis e despesas com cartão de crédito”, apontou Villas-Boas.
“Ao contrário de 2011, hoje estamos profundamente afundados em dívidas, temos a maior parte das receitas futuras antecipadas e podemos estar em vias de conceder direito de exploração comercial e receitas para os próximos 15 anos a uma empresa americana. Não existe visão, nem planeamento, nem modelo de negócio que garanta a sustentabilidade financeira do FC Porto. Ao longo dos últimos 12 anos, o passivo mais do que duplicou, o que é revelador da indiferença da atual administração para com a existência do FC Porto enquanto clube de associados (…) Pergunto a vossas excelências, membros da Direção, se seriam capazes de hipotecar o futuro das vossas famílias à proporção e velocidade com que hipotecam o futuro do FC Porto. Não tenho outra alternativa que não seja manifestar a minha reprovação às contas aqui hoje apresentadas, condicionando a aprovação das mesmas à devolução da remuneração variável recentemente recebida pela atual administração”, completou o antigo treinador, num discurso que teve a ovação da noite.
“Em 2011, jogadores e equipa técnica custavam 50 milhões, metade da totalidade da receita do FC Porto”, responderia mais tarde Fernando Gomes, recordando o período em que Villas-Boas era treinador de uma super equipa em 2010/11 que ganhou o Campeonato, a Taça de Portugal, a Supertaça e a Liga Europa. Esse argumento seria também mais tarde utilizado por outros sócios, que recordaram também a presença de Vítor Pereira, que seria depois bicampeão como treinador principal, nessa equipa técnica de Villas-Boas.
“Estou mais triste por não ter ganho o Campeonato do que com este saldo negativo. Quero dizer que apesar de ter licenciatura e o mestrado em gestão de desporto, não vou falar de contas, não me vou meter na área do doutor Fernando Gomes e do doutor Angelino Ferreira, que são especialistas na matéria. Mas por falar em citações, o ex-treinador André [Villas-Boas] falou numa de 2011 e eu vou falar numa ao Jornal de Notícias de 19 de fevereiro de 2019: ‘Enquanto o presidente for vivo deve liderar’. O nosso sócio e ex-treinador, que disse que se devolvessem os prémios não votaria contra as contas. Queria perguntar a Fernando Gomes se sem esses prémios que vocês receberam as contas passavam de negativas a positivas”, apontou pouco depois Fernando Madureira, que contou ter chegado pouco tempo antes ao aeroporto vindo de Barcelona.
“O associado da cadeira de sonho vem hoje pela primeira vez a uma Assembleia Geral do FC Porto”, disse Henrique Ramos, sem nunca mencionar o nome de Villas-Boas mas visando o antigo técnico campeão. “Tenho duas questões para o associado que veio aqui falar. Como é que em abril de 2020 votou a favor de Pinto da Costa quando o cenário não era melhor do que encontramos hoje em dia? Ou as contas em 2020 eram muito melhores, ou então se foi na Columbia, num workshop de uma semana, que aprendeu a fazer a tabuada. O clube está a delapidar-se, como diz, mas é a primeira vez que vem a uma assembleia geral do FC Porto. Tenho ambições, temos todos, mas é preciso outra coisa, respeito pelo FC Porto. É preciso decência, unir as pessoas e apresentar mais alguma coisa”, acrescentou ainda o associado dos dragões.
Nuno Lobo, candidato derrotado em 2020 que irá avançar com uma nova lista a sufrágio no próximo ano, também falou e teve uma ovação quando disse que estaria “eternamente grato a Pinto da Costa” por tudo o que fez pelo FC Porto mas referiu que iria votar contra as contas e deixou algumas críticas a toda a situação financeira dos azuis e brancos e a outros aspetos que tinha explicado na véspera em entrevista ao programa “Nem tudo o que vai à rede é bola” da Rádio Observador, incluindo a política de contratações.
Só mesmo no final da Assembleia Geral, já com as contas aprovadas com um total de apenas 53% de votos a favor (e 24,2% de abstenções, um número anormal), Pinto da Costa falou aos associados presentes. “Ficou demonstrado que o clube é dos sócios. Dos que votam a favor, dos que se abstêm e dos que votam contra. A todos os que vieram aqui hoje, cumprimento e agradeço a grande jornada de vitalidade”, começou por dizer o presidente dos azuis e brancos, com tantos aplausos como Villas-Boas tinha recebido antes, numa intervenção que teve a duração total aproximada de menos de dez minutos quando já passava das 00h30.
Respondendo de forma direta a alguns pontos que tinham sido referidos durante a noite, sobretudo elogios pela capacidade de liderança que demonstra aos 85 anos, Pinto da Costa teve também palavras positivas para Nuno Lobo, candidato derrotado em 2020 a quem moveu um processo por difamação. “Nuno Lobo marcou presença como um portista que é, de facto, e mostrou um sentido de estado, digamos assim, que não quer terra queimada e absteve-se nesta votação. Deu uma prova de amor ao FC Porto”, apontou, sem esquecer também outro antigo adversário em 1989 e 1991, Martins Soares, antes de elogiar também Fernando Madureira. “Cheguei ao FC Porto como presidente, como associado há 70 anos e dirigente sou desde 1962. Em todas as alturas o Fernando Madureira foi um guarda pretoriano do FC Porto. Beneficiaram dessa guarda e desse amor, desse apoio às nossas equipas. Obrigado, Fernando Madureira”, destacou.
Essa acabaria por ser uma das “indiretas” para André Villas-Boas, que só mais no final seria diretamente visado. “Pela primeira vez na sua vida de portista veio a uma Assembleia Geral. Veio para dizer mal, para propor a recusa das contas sem pensar nos prejuízos que isso trazia para o FC Porto. Naturalmente, espero que reconsidere, que não venha com papéis com os números que lhe põem à frente, que venha dizer o que lhe vai na alma, não o que lhe escrevem no papel para ele vir aqui dizer”, referiu, citado pelo jornal O Jogo, já depois de ter apontado a outro nome bem conhecido do universo azul e branco, o ex-administrador Angelino Ferreira, que foi à reunião magna para votar contra as contas. “Ele está muito preocupado com o futuro do FC Porto. Lembro-me, e ele também, que quando tive a ideia de avançar com o Museu disse que isso era um tufão que ia passar pelo FC Porto. Respondi que tufão só da telenovela que passava nessa altura”, ironizou Pinto da Costa, no habitual estilo que tem nas intervenções públicas.