Quantos conhecidos provérbios sobre aparências se podem aplicar às muitas histórias que as famílias contam à mesa ou em momentos de partilha? No seio de cada família há segredos e mentiras, histórias mal contadas ou simplesmente retratadas pela aparência. E tudo para manter um certo aspeto de normalidade. Tudo está bem, até prova em contrário, dir-se-ia. Ao entrarmos em Definitivamente as Bahamas, peça do dramaturgo inglês Martin Crimp, encenada por Ricardo Neves-Neves, com produção do Teatro do Eléctrico, que se estreia esta semana no Cineteatro Louletano (de 19 a 21 de janeiro), o ambiente floral e a alusão à vida em família não parece demonstrar o contrário. Mas as aparências – claro, está – enganam.
Somos aludidos e encarados, olhos nos olhos, pelos intérpretes. Em palco, um casal de sexagenários, Tita (Custódia Gallego) e Gui (Marques D’Arede) relatam os feitos do filho Fred e da sua mulher Irene, a quem a vida corre muito bem. Têm uma boa casa com piscina e viajam um pouco por toda a parte, tanto que nem sabem ao certo quais foram afinal os destinos turísticos por onde já passaram. Tenerife ou Ibiza? Muito possivelmente as Bahamas. Ele lê um jornal para ocupar o tempo, ela oferece bombons, trata das flores e mostra fotografias dos momentos felizes passados em família. O casal aluga um quarto da sua casa a uma jovem estudante originária da Galiza, Sabela (Cristina Gayoso Rey), que de vez em quando cruza a cena para pouco mais do que atender o telefone, mas cuja presença põe em xeque toda a normalidade que se tenta fabricar na descrição do quotidiano.
Tita enumera futilidades. Começa por falar do silêncio da casa, mas não se cala por um momento. No meio de tanto palavreado, revela preconceitos e estereótipos. As migrações, os povos de outros continentes cujos comportamentos reprova, entre muitas outras banalidades que um qualquer político populista coloca hoje no palanque do seu discurso. “Está psicologicamente provado que tudo o que é asiático só quer é dormir com uma europeia”, diz como exemplo, enquanto conta a história de uma tentativa de violação que a mulher do filho sofreu numa viagem a Manila, nas Filipinas. Construída sobre arquétipos, a peça que a princípio evidencia um ambiente idílico, logo põe a descoberto as fragilidades e os choques culturais, dos quais ninguém sai ileso. É a partir das “monstruosidades que diz que se mostra essa dificuldade de aceitar o diferente e o novo”, explica Custódia Gallego. Em paralelo, o espectador assume um trabalho de detetive face ao que é dito. Nada parece exatamente como é, e apesar do tom leve e coloquial, é na superficialidade que se esconde algo mais preocupante e grave. Lá chegaremos.
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