O mais famoso soneto de Francisco de Sá de Miranda (1481?-1558), que começa por “Desarrezoado amor, dentro em meu peito,” descreve um conflito entre o amor e a razão. É um conflito que migrou para muitas áreas das nossas vidas. Não há taróloga ou cientista social que não sublinhe o modo como aquilo de que gostamos é desfigurado por aquilo que pensamos, isto é, pelas nossas razões, e que não ache que existe uma disjunção entre amor e razão, ou, como às vezes se diz informalmente, entre infra-estrutura e superestrutura.
No caso do soneto de Sá de Miranda, esse conflito parece ser um conflito insanável. Ao contrário de quem acha que é sempre possível acomodar coisas de amor com negócios racionais, Sá de Miranda acha que não há acomodação possível entre amor e razão. O soneto acaba assim com uma das mais famosas perguntas retóricas da literatura portuguesa: “Que farei quando tudo arde?” A pergunta é retórica porque Sá de Miranda tem ar de achar que não há nada a fazer. O seu fogo que arde sem se ver, ao contrário do de Camões, cheira fortemente a chamuscado. É apresentado com a urgência de um incêndio florestal nas suas propriedades de Amares: um verdadeiro desastre que “faz, desfaz, /sem respeito nenhum.” Parece portanto que tudo o que há a dizer deste soneto memorável é que Sá de Miranda nos diz nele que não há nada a fazer: é deixar arder.
Temos a ideia de que um poema responde às suas próprias perguntas, mesmo que estas não tenham resposta. Convenientemente sacudido, cada poema dar-nos-ia uma versão do mundo que se basta a si própria e que atribuímos ao seu autor. Esta teoria pode todavia não ser completamente verdadeira. Não é de excluir que a resposta que a uma obra de um autor nos dá não seja uma coisa que se siga automaticamente de um interrogatório mais vivo; e possa ser modificada por outras obras do mesmo autor, e por muitas outras coisas, muito diferentes entre si; e assim que a pergunta sem resposta “Que farei quando tudo arde?” seja respondida por outras obras de Sá de Miranda.
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