Os processos de especial complexidade duram em média oito anos e um mês até uma decisão definitiva na justiça portuguesa. Esta é uma das conclusões do estudo “Processos de especial complexidade — uma análise quantitativa e qualitativa” que será apresentado esta quinta-feira no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa e traça um retrato abrangente do impacto dos denominados megaprocessos na justiça portuguesa na última década.
Sob a orientação do Gabinete de Apoio aos Magistrados Judiciais (GAMJ), este estudo inédito faz um levantamento de 140 processos especialmente complexos distribuídos desde 2013 no Juízo Central Criminal de Lisboa, analisando prazos processuais, crimes, arguidos e medidas de coação, entre outros aspetos.
Em relação à análise da duração total dos processos desde o início do inquérito até ao trânsito em julgado, tal só foi possível em 68 dos 140 casos analisados, tendo o intervalo entre quatro e cinco anos concentrado um maior número de processos (16%). Contudo, a média de tempo cifrou-se em oito anos e um mês e 31% destes processos — ou seja, quase um terço — arrastou-se durante mais de 10 anos na justiça.
Já nos processos que ainda não transitaram em julgado e que continuam a ser apreciados em diferentes fases nos tribunais portugueses regista-se uma duração média de nove anos e três meses, com 9% destes casos a decorrerem já há mais de 15 anos sem que tenham sido dado como encerrados.
Quanto à fase de inquérito foi contabilizada a duração de 132 processos, evidenciando uma média de três anos e oito meses.
A maioria situou-se entre dois e três anos de investigação (27%), mas juntando aqueles que duraram até um ano (2%) e entre um e dois anos (22%) atingiu-se um total de 51%. Por outro lado, 49% destes inquéritos demoraram mais de três anos a ser concluídos pelo Ministério Público (MP), sendo que 6% estiveram sob investigação mais de sete anos.
Na fase de instrução foram observados somente 118 processos, apontando para uma média de cinco meses e 25 dias de duração desta fase facultativa que visa avaliar se existem indícios suficientes para levar a julgamento uma pessoa acusada de um crime.
Em 71% dos processos a instrução não foi além dos seis meses, mas em 13% esta fase prolongou-se por mais de um ano, sendo que a estes prazos há que somar ainda o tempo entre a acusação do MP e o arranque da instrução, bem como o período que decorre desde a decisão instrutória até ao início do eventual julgamento.
Quanto à fase de julgamento só foram analisados 109 processos, com o estudo a indicar um tempo médio de dois anos e três meses de diligências em tribunal até uma decisão. A maior parte até não durou mais do que um ano (34%) em julgamento e 57% duraram até dois anos, mas ainda houve 28% de processos que foram julgados durante mais de três anos e 9% a prolongarem-se, inclusivamente, por mais de cinco anos.
Com 68 processos cujo inquérito teve arguidos sujeitos a medidas de coação privativas de liberdade, a duração média desta fase foi de dois anos e oito meses, ou seja, menos um ano do que a média geral de três anos e oito meses nos inquéritos dos megaprocessos.
A grande maioria (77%) das investigações com arguidos em prisão preventiva ou domiciliária não foi além dos três anos, o que traduz um andamento mais rápido destes casos por força dos prazos legais permitidos para as medidas de coação mais gravosas.
Em termos de duração total desde o inquérito até trânsito em julgado da decisão do tribunal (nos 38 processos com arguidos privados de liberdade que foram dados como concluídos), observou-se uma média de seis anos e dois meses, isto é, menos dois anos do que a média geral do tempo dos megaprocessos. O maior peso foi de 26% no intervalo entre quatro e cinco anos, mas ainda se registaram 13% de casos com esta circunstância a durar mais de 10 anos.
Quando não existem medidas de coação privativas de liberdade, os processos especialmente complexos tendem a demorar mais, com uma média de duração do inquérito de quatro anos e nove meses (mais 11 meses do que a média geral), uma maioria de 53% a durar entre quatro e sete anos e 11% a abarcar mais de sete anos só nesta primeira fase processual.
A duração total dos 30 casos que já transitaram em julgado e que não tiveram arguidos com medidas de coação mais gravosas apresentou uma duração média de 10 anos e meio, portanto, mais dois anos e cinco meses do que a nível geral. A maior percentagem (17%) de casos situou-se entre 11 a 12 anos de tempo, logo seguida pelos casos que duraram mais de 15 anos e que foi de 13% desta amostra.
Já entre os processos sem arguidos em prisão preventiva ou domiciliária que ainda não têm uma decisão definitiva nos tribunais assinalou-se uma média de 10 anos e dois meses.
Segundo os dados apurados nestes processos especialmente complexos, o estudo indicou não haver uma relação direta entre o número de arguidos e o tempo da investigação, uma vez que um processo com 21 arguidos durou 11 anos e meio na fase de inquérito e outro com 101 precisou de menos de dois anos até ser efetuada uma acusação pelo Ministério Público (MP). “Não é por haver mais arguidos que a fase de inquérito fica mais longa”, lê-se no documento.
A mesma ausência de relação verifica-se no que toca aos crimes, em que o processo analisado com mais crimes chegava aos 7.679 e esteve quase sete anos em investigação. Porém, um processo com apenas 32 crimes imputados esteve aproximadamente 11 anos em investigação.
Sobre a instrução não é detetada qualquer tendência entre o número de arguidos ou a quantidade de crimes em causa e a duração desta fase processual facultativa.
Ao nível do julgamento, o estudo concluiu que o número de crimes ou arguidos também não tem uma influência direta sobre a duração desta fase no tribunal.
Os dados apontam igualmente uma “clara tendência crescente” na duração dos julgamentos consoante o número de sessões realizadas, com o julgamento mais longo entre os casos analisados a durar oito anos e meio, distribuídos ao longo de 718 sessões. Apesar disso, houve um megaprocesso incluído na análise que teve apenas 17 sessões, mas em que o julgamento se prolongou por sete anos.
Os incidentes processuais têm um impacto significativo no andamento destes megaprocessos, tanto ao nível da instrução como no julgamento.
Em 114 processos analisados na instrução, 106 decorreram sem a apresentação de incidentes, o que se traduziu num período de cinco meses e meio para esta fase; já os oito casos em que se registaram incidentes processuais fizeram a duração média disparar para os 10 meses.
O mesmo padrão ocorre em fase de julgamento: 90 processos especialmente complexos decorreram sem incidentes, com uma duração média de 24,4 meses (sensivelmente dois anos), enquanto os 19 que tiveram incidentes suscitados prolongaram-se para uma média de 42 meses, ou seja, três anos e meio.
Na amostra analisada pelo estudo o crime com maior prevalência nestes processos foi a burla, seguido de fraude e corrupção.
Destes três, só a fraude surge entre os crimes que mais contribuíram para uma maior duração média dos processos, atrás apenas de extorsão/coação e superando ainda o crime de abuso de poder — todos com um tempo médio acima dos 10 anos.
Em sentido inverso, destacaram-se os crimes de auxílio à imigração ilegal e o roubo, cuja duração média dos processos rondou os quatro anos entre inquérito e decisão definitiva.
Da acusação do MP à decisão instrutória, a grande maioria dos crimes imputados é alvo de confirmação, com diversas categorias a registarem 100% de validação pelo juiz de instrução, nomeadamente, crimes contra a integridade física, contra a vida, contra a segurança do Estado, da responsabilidade de titulares de cargos políticos ou da justiça militar. Por outro lado, os que mais caem nesta fase são os relacionados com o combate à droga, em que a queda é de 66%.
Já na comparação entre a acusação e o acórdão do julgamento há uma queda de crimes mais assinalável, alguns dos quais a atingirem inclusivamente os 100%, como os crimes da responsabilidade de titulares de cargos políticos.
Entre o tribunal de primeira instância e os tribunais superiores os números traduzem um elevado nível de confirmação das decisões, sendo as exceções mais visíveis nos crimes contra a segurança do Estado (50% de não validação), infrações ao regime de armas e munições (44%), contra a paz pública (24%) ou cometidos no exercício de funções públicas (22%).
A análise assentou na anonimização dos 140 processos de especial complexidade selecionados como amostra, aos quais foram aleatoriamente atribuídos números de 0 a 140.
No entanto, o estudo inclui a indicação do número único identificador de processo-crime de cada caso, sendo possível identificar vários megaprocessos que percorreram os tribunais portugueses na última década, bem como alguns que ainda nem chegaram a julgamento.
Entre esses processos encontram-se, por exemplo, os seguintes: Operação Marquês, Caso EDP, E-toupeira, Football Leaks/Rui Pinto, os dois primeiros processos ligados ao BPP e ao antigo banqueiro João Rendeiro, a Operação Fizz, o Caso BPN, o processo dos colégios GPS, Hells Angels e o caso do Museu da Presidência.
Os autores do estudo defendem a necessidade de uma efetiva desmaterialização destes megaprocessos, com a disponibilização das ferramentas tecnológicas mais avançadas aos funcionários judiciais; a uniformização da forma como os diversos documentos são catalogados dentro dos processos, associada a ações de formação em gestão documental; o reflexo do desenvolvimento do processo na plataforma Citius; ou a digitalização de apensos.
É ainda defendido o aumento dos recursos humanos nas unidades de processos, com equipas especialmente alocadas aos processos de especial complexidade, o reforço da capacidade do Citius para submeter documentos, um mecanismo de controlo efetivo do número de testemunhas arroladas ou metodologias mais rápidas para recorrer a tradutores.
O estudo levanta ainda questões para reflexão, como a definição de limite temporal para o julgamento de processos sem arguidos privados de liberdade, a ponderação de prazos prescricionais ou das suas causas de suspensão, a eventual fixação de prazos máximos para notificações, o fim da fase de instrução em casos sem medidas de coação privativas de liberdade ou a alocação de juízes específicos para os casos de especial complexidade.
A apresentação do estudo está enquadrada na conferência “Megaprocessos – Quando a justiça criminal é especialmente complexa”, que decorre na quinta e na sexta-feira no Palácio da Justiça, foi promovida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa com o apoio do Conselho Superior da Magistratura (CSM) e inicialmente contava com a participação de magistrados do Ministério Público (MP), mas a PGR, Lucília Gago, travou tais presenças por considerar que “o momento não é todo propício a que, no contexto do mencionado evento, essa reflexão possa ser feita com rigor e serenidade”.
“Por isso e não assumindo premência tal realização na calendarização prevista, considerou [a PGR] desaconselhada a participação de magistrados do MP”, diz uma nota da Procuradoria enviada à Lusa.
Segundo o CSM, a intenção é promover “uma intensa discussão” entre os intervenientes da “gigante teia que compõe os megaprocessos, com participações distintas, pontos de vista complementares e ideias a partilhar”.
“Com a realização deste encontro, em 2024, o ano em que os tribunais se preparam para receber os maiores megaprocessos da justiça portuguesa, muitos deles de grande impacto mediático, a Comarca de Lisboa e o CSM promovem uma discussão com aplicação prática para ajudar naquela que é uma das suas missões: apoiar o juiz a desempenhar a sua função primordial, a de julgar”, referiu o CSM.
Salienta ainda que “os megaprocessos, conhecidos por serem complexos, pela natureza dos crimes, número de intervenientes e meios de prova apresentados, impõem, necessidades logísticas superiores aos processos comuns, e por isso não permitem o tratamento e julgamento no tempo considerado adequado, levando, muitas vezes, a que a imagem da Justiça saia prejudicada”.
O CSM lembra que, nos últimos meses, levou a cabo diversas medidas para “combater as dificuldades identificadas e libertar os juízes de funções que dificultam e demoram o seu trabalho”, tendo em outubro passado, decidido criar um grupo de trabalho para avaliar os principais constrangimentos processuais e extraprocessuais causadores de morosidade e definir uma estratégia de apoio à tramitação destes processos penais especialmente complexos”.
Para o efeito foi criada “uma nova estrutura de apoio, a Estrutura ALTEC – Apoio Logístico à Tramitação de Elevada Complexidade”, equipada com a tecnologia mais recente e com a participação de juízes, assessores, oficiais de justiça e funcionários de tribunais, por forma a permitir preparar e tratar previamente a informação destes processos.
O julgamento do caso BES, a pedido do coletivo de juízes a quem o processo foi distribuído, será o primeiro a contar com o apoio desta estrutura.