É um pequeno preço a pagar pelos privilégios de viver em democracia: ter de levar com umas almas que, volta e meia, falam em nome do “povo”.
Por qualquer razão misteriosa, este subgénero de criatura crê-se investido à nascença de aptidões especiais que lhe permitem ouvir melhor que o seu semelhante os pensamentos silenciosos dos concidadãos; interpretar o zeitgeist; agregar e analisar, num subconsciente matemático qualquer, o somatório de todas as opiniões que ouviu e até das que não ouviu. Se o expressassem apenas em privado, só os familiares e vizinhos é que sofriam, mas faz parte destes miraculados insistir em partilhar com o mundo a sabedoria do seu dom, como se uma entidade divina qualquer os tivesse enviado à Terra com essa missão ou, pelo menos, tivessem sido contratados para esse fim pela ONU.
Como reconhecer estes mensageiros celestes, se se passeiam entre nós como mortais iguais aos outros? É muito simples: substituem o pronome pessoal “eu” ou “nós” por “o povo”, questão complicada do ponto de vista gramatical, quanto mais do antropológico. Na prática, isto resulta na repetição rotineira de sentenças como: “O povo não gosta”, “o povo está farto”, “o povo está cansado”, “o povo sente-se enganado”, “o que o povo quer é”, “o povo não quer saber de”, “o que preocupa o povo”, “o que interessa ao povo”, “o povo não vai nessa [cantiga, conversa]”, e outras que tais.
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