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Telegramas, traduções e o processo explicado a líderes europeus por Montenegro e Marcelo. Os bastidores da nomeação de Costa – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Jul 4, 2024

Nos meses seguintes, o Presidente da República foi esclarecendo os líderes europeus sobre outras dúvidas. “Se numa primeira fase queriam saber do processo judicial, numa segunda já queriam saber se ele se queria afastar da política ou não; numa terceira fase, queriam saber a posição do Governo português; e numa quarta fase, mais perto do fim queriam saber se, tendo iniciado outras atividades, como a televisão ou as arbitragens, se ainda estava interessado“, explica fonte de Belém ao Observador. As respostas de Marcelo foram sempre pró-Costa.

O Presidente da República terá ainda utilizado a sua rede do Grupo de Arraiolos para ir fazendo essa campanha por Costa. Apesar de não terem poder executivo, os chefes de Estado de Alemanha, Bulgária, Croácia, Eslovénia, Estónia, Finlândia, Grécia, Hungria, Irlanda, Itália, Letónia, Malta e Polónia estão entre o rol de presidentes com quem Marcelo mantém contactos regulares. Fonte socialista em Bruxelas reconhece que “Marcelo foi dando mais força política” à candidatura de Costa à medida que o desfecho se aproximava.

Ainda assim, a ironia maior era que o que parecia ser o pior bloqueio ao sonho europeu de Costa passou a estar ultrapassado a 7 de novembro. Mas nesse mesmo dia nasceu outro de proporções ainda mais decisivas: a questão judicial.

Três dias depois da queda do Governo, a 10 de novembro, os socialistas europeus reuniram-se, em congresso, em Málaga e Costa tinha estado no cartaz como um dos nomes de peso a discursar. Tinha sido preparado como mais um momento de consagração europeia do líder socialista português, mas o dia 7 de novembro mudou tudo também nesse palco. Costa já não quis ir, saiu do elenco e os socialistas portugueses que participaram nesse encontro lembram o “efeito de choque muito grande” que as notícias vindas de Portugal provocaram.

Um desses socialistas conta ao Observador o ambiente “de choque” nesse congresso e a dificuldade que foi explicar a situação judicial do português aos camaradas europeus — não era acusado, nem arguido, um termo de difícil compreensão no Direito além fronteiras nacionais. “Tínhamos de traduzir arguido por person of interest porque eles nem percebiam essa figura”, conta ao Observador a mesma fonte. A condição de Costa, que se demitira com um processo-crime instaurado contra si, era questionada por todos. “Foi uma dificuldade que foi preciso superar“, acrescenta outra fonte do PS em Bruxelas que se lembra de ouvir os seus interlocutores a dizerem que o que descreviam de Lisboa “não parecia ser um impedimento” para Costa, mas ao mesmo tempo também se acrescentava logo de seguida: “Mas expliquem lá o que isso significa”.

O dinheiro encontrado na sala de trabalho do chefe de gabinete de Costa, Vítor Escária, provocou “um choque muito grande”, admite um socialista ouvido pelo Observador, e esse foi outro capítulo que suscitou muitas dúvidas. A perceção que acabou por vingar entre socialistas foi, no entanto, benévola para Costa cuja demissão foi “vista como um gesto de escrúpulo  democrático, num padrão que é incomum”, garante outro socialista familiarizado com os corredores de Bruxelas. O mesmo que aponta que o receio maior foi que isso pudesse ser usado contra Costa pelos adversários políticos em futuras negociações. Entre os socialistas “nunca foi um obstáculo insuperável”, garante.

Prova disso é que, saído de legislativas, ainda antes de anunciar de viva voz aos camaradas europeus que tinha um acordo para governar Espanha, Pedro Sánchez quis ter logo um gesto solidário com o amigo António Costa. Em Málaga, na primeira vez em que se dirigiu ao congresso dos socialistas europeus dias depois da demissão em Lisboa, o primeiro-ministro espanhol não fugiu ao tema: “Permitam-me que as primeiras palavras desta intervenção sejam para enviar um abraço em nome da família socialista europeia a um grande socialista, um grande companheiro: António Costa”. Toda a sala aplaudiu e muitos dos presentes fizeram-no de pé. Costa continuava a ser acarinhado pela sua família europeia. E mantinha-se uma estrela entre eles.

O que é certo é que o processo judicial fez correr a equipa de Costa, onde o seu antigo secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e vice dos socialistas europeus, Francisco André, teve um papel preponderante. Em Portugal, Costa também contava com inputs do seu antigo secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Tiago Antunes, e ainda com a ação de vários diplomatas portugueses. As decisões judiciais que surgiram pelo caminho foram prontamente difundidas — e traduzidas — entre quem importava nas instituições europeias e mais do que uma fonte refere ao Observador o efeito “tranquilizador” dos “telegramas das embaixadas em Portugal enviados para as capitais” em cada um desses momentos.

A iniciativa de Costa de pedir, logo a 2 de abril, para ser ouvido pela Justiça teve como objetivo tentar “clarificar” a sua posição perante a Justiça, acelerando decisões a tempo de ainda conseguir concorrer ao Conselho Europeu. Era uma corrida contra o tempo e quando pediu para ser ouvido a única certeza que tinha era que o Código de Processo Penal refere que “é obrigatória a constituição de arguido logo que correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal.” Mas foi já só durante a audiência com a procuradora que ficou a saber que não haveria matéria para que fosse constituído arguido. “O efeito de arquivamento deu-se nesse dia”, acredita um socialista.

O seu caso continuava, no entanto, a suscitar questões em alguns meios em Bruxelas e, mais recentemente, coube a Montenegro fazer um papel pedagógico junto dos populares sobre esta mesma situação. A 17 de junho, na reunião do PPE que serviria de antecâmara à reunião do Conselho Europeu – o tal que se traduziu num impasse em relação à escolha dos top jobs europeus — o tema judicial saltou para cima da mesa. A investida foi liderada pelo polaco Donald Tusk, que falou publicamente sobre o caso judicial que envolve António Costa. “Tem competências, mas temos de esclarecer o contexto jurídico. Sabem do que estou a falar”, sugeriu o primeiro-ministro da Polónia e antigo presidente do Conselho Europeu.

Quando entrou nessa reunião Montenegro já estava preparado para sofrer uma enorme pressão no sentido de deixar cair o apoio a António Costa – semanas antes, as conspirações nos corredores de Bruxelas enchiam páginas de jornais. Ao socialista eram apontadas essencialmente três grandes fragilidades: o processo judicial em que está envolvido, uma posição pouco entusiasta sobre a inclusão da Ucrânia na União Europeia e uma política de imigração considerada demasiado soft. Como pano de fundo havia ainda a tal possibilidade de se concretizar a candidatura da socialista e dinamarquesa Mette Frederiksen, conhecida por ter posições muito mais duras em matéria de imigração do que Costa e por ser muito mais entusiasta em relação à integração da Ucrânia da União Europeia, o que agradava mais à ala mais musculada do PPE. Ou mesmo Enrico Letta, mais próximo dos interesses italianos do que Costa.

Aos olhos desta fação, o processo judicial que envolve António Costa era o pretexto perfeito para juntar as pontas e acabar de vez com as pretensões do socialista. “Se não fosse Luís Montenegro, a candidatura de António Costa tinha morrido nessa reunião”, assegura ao Observador fonte social-democrata. À porta fechada, o primeiro-ministro português começou por responder às dúvidas de Donald Tusk, explicando que António Costa já tinha sido ouvido pela Justiça e que não era sequer arguido na Operação Influencer.

Montenegro explicou em traços gerais o que estaria em causa, terá reconhecido que havia elementos do gabinete de Costa que estavam a braços com a Justiça, mas que Costa, depois de ouvido pelos investigadores, não tinha sido constituído arguido e que, pelo menos até ao momento, e ao contrário do que aconteceu com outros envolvidos, não havia indícios que ligassem diretamente o socialista ao objeto da investigação. Mesmo sem se ter atravessado pela inocência de Costa, Montenegro contextualizou e clarificou alguns dos aspetos do caso. Terá o suficiente para aplacar as dúvidas de alguns dos parceiros do PPE.

Relação não encontrou quaisquer indícios de que Costa tenha sido influenciado por Lacerda Machado

Logo no início de abril, quando foi indigitado primeiro-ministro, o social-democrata falou pessoalmente com o antecessor para garantir que, caso Costa decidisse mesmo avançar, o Governo português apoiaria sem hesitações a corrida à presidência do Conselho Europeu. Na noite das Europeias, depois de uma derrota para a AD nas urnas, o primeiro-ministro oficializou o apoio do Governo e, na CMTV, o seu antecessor no cargo confirmava a conversa prévia que ambos tinham tido.

Fontes sociais-democratas acreditam até que António Costa não foi à campanha do PS, onde Marta Temido era cabeça de lista, devido a um acordo prévio com Luís Montenegro. A tese é que, para que o primeiro-ministro pudesse ser tão taxativo logo na noite eleitoral no apoio ao antecessor para o Conselho Europeu, Costa não devia estar três/quatro dias antes a atacar o Governo numa qualquer ação de campanha do PS.

Certo é que a ausência de Costa da campanha socialista — que é apontada, na entourage social-democrata, como um exemplo da astúcia e habilidade política de Montenegro — também foi estranhada no PS. Na campanha, os socialistas foram apontando a Costa vários momentos em que poderia ir apoiar (até sem discursar) a cabeça de lista do PS e sua ex-ministra, mas o ex-líder entendeu não aparecer, sem que fosse apontada uma explicação clara. No círculo mais próximo de Costa esta ausência é, no entanto, explicada como cumprindo a linha de afastamento do novo ciclo socialista em relação ao passado.

O que acabou por ser claro é que, a partir do púlpito da sala no Hotel Sana, sede da noite eleitoral da AD, o apoio de Luís Montenegro não podia ter sido mais taxativo: “A AD e o Governo não só apoiarão como farão tudo para que essa candidatura tenha sucesso”. E Costa respondeu a partir dos estúdios televisivos onde estava: “Nunca aceitaria ser presidente do Conselho Europeu sem o apoio do Governo do meu país. Poderia ser, mas nunca aceitaria.”

Não era uma impossibilidade avançar sem o apoio do seu Governo, mas o próprio socialista já tinha tomado uma posição no Conselho Europeu, no passado, que o vinculava a esta posição expressa na noite eleitoral. Em 2017, o polaco Donald Tusk avançou para uma recandidatura ao segundo mandato sem o apoio do seu Governo e Costa, como outros líderes, tinha feito saber que só o apoiava porque era uma reeleição.

Relação não encontrou quaisquer indícios de que Costa tenha sido influenciado por Lacerda Machado

Ultrapassados os dois bloqueios nacionais com impacto em Bruxelas, ainda faltava passar no Conselho Europeu. O acordo político da distribuição dos top jobs já tinha ficado alinhavado mesmo antes das Europeias, sendo certo que não era indiferente o desempenho eleitoral de cada família política. Logo na noite das Europeias em Portugal, na CMTV, o comentador António Costa destacava o segundo lugar confirmado pelos Socialistas e Democratas e em como isso significaria que seria deles o cargo de presidente do Conselho Europeu. Sabia que fazia parte do acordo onde estava o nome de Ursula, mas as conversas decisivas começariam apenas a 17 de junho.

De acordo com fontes conhecedoras do processo, não fosse a intervenção assertiva de Luís Montenegro em defesa do antecessor e, muito provavelmente, afiançam, a candidatura teria caído por terra. O primeiro-ministro terá sido muito importante para travar o “golpe” que a linha mais dura do Partido Popular Europeu (PPE) se preparava para infligir. Um socialista comenta com o Observador outro ponto de vista: “Ursula Von der Leyen desejava a solução António Costa e isso é que é decisivo para a posição do PPE”.

Certo é que no PPE nem tudo foram rosas, ainda que o alvo não fosse necessariamente Costa. Havia quem, alinhado em grande medida com os interesses de Giorgia Meloni (dos Conservadores) e de Viktor Orbán (ex-PPE), quisesse dinamitar o trio Ursula-Kallas-Costa e vestir o fato de kingmaker. De certa forma, foi isso que aconteceu há cinco anos, quando a linha dura do PPE travou as intenções de Angela Merkel (que aceitara o socialista Timmermans na Comissão Europeia) e garantiu uma figura do PPE (Von der Leyen, precisamente) no cargo.

Além disso, entre os populares existiam dúvidas sobre Costa em questões mais programáticas – a política de imigração e a relação da UE com a Ucrânia – Montenegro terá aproveitado a reunião do PPE para dar todas as garantias de que o antecessor era a pessoa certa para ocupar o cargo, tendo sentido a necessidade de lembrar aos seus homólogos europeus que, durante oito meses, foi o líder da oposição a Costa. Segundo fontes conhecedoras do processo, Montenegro terá mesmo levantado a voz para dizer a todos aqueles que achavam que Costa não era suficientemente europeísta ou suficientemente moderado, que não era ele o socialista que mais convinha ao PPE, estariam redondamente enganados.

Montenegro sairia dessa reunião do PPE, a 17 de junho, sem garantias de que Costa teria, de facto, o apoio do centro-direita. À noite, nesse mesmo dia, os chefes de Governo e de Estado sentaram-se no Conselho Europeu e tentaram (sem sucesso) fechar logo, ao jantar, as escolhas de Ursula, Kallas e Costa. Também aí, nessa reunião, Montenegro terá tomado a palavra para defender os méritos da candidatura de António Costa.

No próprio PPE nascera entretanto uma proposta inovadora, exigindo o cumprimento do mandato de presidente do Conselho Europeu de apenas dois anos e meio, previstos pelos tratados, em vez dos dois mandatos, num total de cinco anos, que têm sido informalmente habituais. A proposta foi trazida para cima da mesa pelo primeiro-ministro croata, Andrej Plenković, a meio da reunião. O argumento é apenas um: o PPE teve um resultado global melhor nestas eleições do que nas de 2019 e, portanto, deve ter mais representatividade nos cargos de topo neste mandato. Entre socialistas esta proposta, que acabou por vazar para fora da reunião dos populares, foi vista como uma tentativa do próprio croata tentar a sua sorte na corrida ao cargo de Costa. Acabou por cair e foi dado palco para que os negociadores indicados pelas três famílias europeias envolvidas nas conversações chegassem a um acordo na semana seguinte.

Tusk e o grego Mitsotakis representaram o PPE, de centro-direita; Scholz e Sánchez, o S&D, de centro-esquerda, e Macron e Mark Rutte, os liberais do Renew Europe. A 25 de junho, finalmente, o desbloquear da situação: as três forças políticas estavam de acordo em relação ao trio. Quando, dois dias depois, Montenegro partiu para Bruxelas, já tinha o conforto de ter um pré-acordo em cima da mesa. Na habitual reunião do PPE que antecede qualquer Conselho Europeu, já ninguém levantou obstáculos à escolha de Costa. À noite, quando a reunião entre os líderes europeus já se arrastava há mais de nove horas, houve finalmente fumo branco: António Costa era finalmente nomeado presidente do Conselho Europeu.



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