• Dom. Set 22nd, 2024

O Barco da Neurose – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Set 15, 2024

Um filósofo observou que somos parecidos com marinheiros no alto mar que precisam de reparar os respectivos barcos mas que, justamente porque estão no alto mar, não podem fazer tudo o que é preciso; por exemplo, só conseguem reparar tábuas do seu casco em mau estado se não as tentarem substituir todas ao mesmo tempo. Uma tábua nova tem sempre de ser pregada a alguma coisa que já exista, mesmo que essa coisa não esteja em grande estado. As grandes reparações navais dão mau resultado em mar alto, e são desaconselháveis.

Usou esta analogia para explicar a relação que existe entre as ideias novas que os cientistas têm e as suas ideias velhas; e para mostrar que uma nova teoria não consiste em aparafusar ideias novas a ideias novas; mas em emendar aqui e ali ideias velhas com ideias melhores. Para o filósofo do barco nunca estamos numa posição em que possamos prescindir de todas as ideias insatisfatórias; a reparação das nossas ideias mais insatisfatórias consegue-se fazer à base das ideias que arranjamos nessas emergências.  Quando estamos longe da costa não podemos começar do zero; e estamos sempre longe da costa.

A analogia poderá ocorrer-nos em dias em que as torneiras pingam, apareceram manchas nas paredes, e o planeta caminha para a destruição.   O único remédio para estas várias conjunturas trágicas é fazer o que se pode, e fazê-lo na medida em que se puder fazê-lo.  Com probabilidade a torneira nova ficará por cima de um lavatório velho; e só conseguiremos pintar uma parede. A analogia aplica-se também sem esforço a matérias políticas: as soluções para problemas políticos são mais parecidas com torneiras novas em casas de banho velhas do que com propostas de lei para abolir a humidade.

Somos não obstante frequentemente atormentados pela ideia de resolver problemas de cima a baixo.  Atrai-nos a disjunção segundo a qual ou as coisas são feitas em condições, ou não há condições para fazer nada.   A mesma atracção neurótica leva-nos a decidir no alto mar substituir todas as tábuas do casco ao mesmo tempo, e também felizmente a desistir de o fazer à primeira contrariedade; encoraja a fantasia que consiste em, como disse também o filósofo do barco, “sobrestimar as nossas visões.” Quanto mais drásticas são as nossas visões, maior é a probabilidade de as sobrestimarmos.

Percebe-se porquê: as visões que mais sobrestimamos mostram-nos sempre que tudo está ligado, que as soluções são mentais, que as condições são claras, que os outros são cegos, e que não há mais nada a fazer.  As soluções que nos aparecem nessas visões são como as soluções dos sonhos, isto é, como comer algodão doce: ficamos lambuzados, mas não permanentemente satisfeitos.   O talento para a sobrevivência exprime-se muito melhor em reparações parciais do que em visões; e, francamente, através de uma certa falta de condições tecnológicas, políticas e filosóficas.

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