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O fogo da demagogia – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Set 19, 2024

Tínhamos chegado a Setembro, e parece que só haveria Orçamento para comentar. Mas não. Os incêndios florestais apenas vieram um pouco mais tarde. Não foi desta que escapámos às mesmas imagens e às mesmas palavras. Que falta ainda dizer? Somos um dos países que mais arde na Europa, e, no entanto, nunca estamos preparados. Em Portugal, as chamas são como os impostos: já sabemos que hão-de vir, mas quando chegam, é sempre a mesma surpresa.

Tudo isto tem uma história. Nos meados do século XIX, fora das áreas de cultivo, Portugal tinha uma paisagem de areais, charnecas e cumeadas nuas, muito adequada para impressionar os estrangeiros pela poeira que era capaz de produzir. Foi essa desolação que o Estado decidiu alcatifar de árvores. Para não demorar, escolheu espécies de crescimento rápido, como o pinheiro e mais tarde o eucalipto. Os primeiros incêndios foram atribuídos à má vontade dos pastores, que não gostaram de ver os serviços florestais vedarem as serras e os baldios para onde levavam os rebanhos. No fim do século XX, a revolução florestal cruzou-se com o êxodo rural: às árvores do Estado, juntou-se o matagal sempre em expansão dos campos abandonados. Num país de Verões quentes e ventosos, com um relevo de acesso difícil, o resultado foi os fogos tornarem-se tão recorrentes no Verão como a gripe no Outono.

Mas o ponto aqui é que raramente a discussão anual sobre fogos reconheceu isto. Para o comentário de café, agora feito nos estúdios de televisões sem dinheiro para outra coisa, os fogos foram sempre um problema com causas simples e soluções ainda mais simples: a culpa é dos pirómanos, e, portanto, é prendê-los; ou da “falta de meios”, e, portanto, é alugar mais aviões; ou do tipo de revestimento vegetal, e, portanto, é substituí-lo; ou do aquecimento global, e, portanto, é banir o petróleo. A classe política, muito insegura desde que divergimos da Europa, não se atreve a mudar os termos paranoicos ou megalómanos da conversa: agora, deu-lhe para ameaçar os “criminosos”.

Este tipo de demagogia, como em outros assuntos (SNS, por exemplo), tem um efeito: desvia o debate para as alturas do delírio e da impossibilidade, longe das coisas que seria possível fazer. Não é exequível eliminar os incêndios florestais: para isso, só limpando o país de arvoredos e matos, e obrigando a população das cidades, como fizeram os khmeres vermelhos, a ir para o campo. Mas é praticável limitar as consequências nefastas do fogo para as pessoas, os seus bens, e as áreas naturais de maior valor. É esta a questão: como é que, ano após ano, sabendo-se da recorrência dos incêndios, ninguém parece ter preparado nada, montado os devidos sistemas de alerta e evacuação onde há povoações, ou reforçado a vigilância e os obstáculos à propagação onde a floresta é preciosa? Porque é que, enquanto a chuva não vem, tem de ser sempre o caos, a improvisação, a tragédia? Ontem, um comandante descrevia a Protecção Civil como o “guarda-redes do sistema”: mas este é um sistema que parece jogar só com o guarda-redes em campo, sem defesas, médios ou avançados.

A demagogia adora planos tonitruantes – prisões em massa, novas revoluções florestais. Não recomendo que se deixe tudo na mesma. Mas não seria preferível começar por apurar estratégias com o objectivo mais realista de, em caso de incêndio, proteger povoações, garantir vias de comunicação, e salvaguardar o património natural valioso? Para isso, porém, teremos talvez de desaprender a lição do velho Marx, e compenetrar-nos de que convém compreender o mundo antes de tentar transformá-lo.

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