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O hábito da confissão – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Out 14, 2024

Em Memória Vermelha, Tania Branigan debruça-se sobre os acontecimentos que marcaram a sociedade chinesa durante a Revolução Cultural e que ainda hoje se revelam no modo como os chineses se expressam culturalmente e se relacionam com o poder e a política. O livro procura reconstruir a memória traumática, sedimentada entre a importância de recordar e a necessidade de esquecer, desses dez anos (entre 1966 e 1976), em que grupos de Guardas Vermelhos, compostos essencialmente por jovens universitários, levaram a cabo múltiplos atos de violência e destruição com o objetivo de eliminar os inimigos de classe e purificar a classe dirigente.

Os mais simbólicos desses atos eram as sessões de luta, justificadas com a promoção da autocrítica, mas que constituíam, na verdade, momentos de violência e humilhação pública. Os resultados eram ambíguos, uma vez que as confissões públicas procuravam apenas terminar com o processo degradante em curso, mas ainda assim milhões de jovens foram mobilizados entusiasticamente para este exercício de violência. Afinal, de acordo com o slogan da Grande Revolução Cultural Proletária, “A violência é a verdade.”

Como sabem todos aqueles que estudam movimentos de massas, somos seres essencialmente tribais e quando o mecanismo emocional de pertença é ativado há poucas coisas que não somos capazes de fazer. Não é, por isso, surpreendente que este tipo de mobilização se repita – ainda que, naturalmente, em contextos diferentes. É nesse sentido de coincidência que investigadores como James Lindsay têm interpretado os momentos atuais de autocrítica woke como uma repetição daquelas sessões de luta.

Uma particularidade do século XXI é que elas já não se desenvolveriam necessariamente em salas de aula ou praças (embora isso também aconteça), mas teriam geralmente lugar nas “redes sociais”, com processos de admissão de culpa e momentos de humilhação pública exigidos como forma de penitência pela realização de atos, quase sempre insignificantes, como o uso de palavras erradas. Mas o ato de contrição mantém as características da memória vermelha: é resultado de pressão social e visa manifestar uma conversão ideológica que lhes permita ser novamente aceites ou, pelo menos, escaparem à perseguição das ondas de indignação digitais.

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Se considerarmos que o resultado pretendido é o de condicionar o que pode ser dito publicamente, os efeitos de controlo social têm surtido efeito. Mas, tal como aconteceu na sociedade chinesa, é conseguido à custa da destruição da liberdade individual, da confiança social que deve ligar os membros da comunidade e do valor da confissão.

Na introdução à sua tradução dos Quatro Evangelhos, Frederico Lourenço destaca a singularidade dos textos que temos à nossa frente:

“nestes quatro textos não se falava das façanhas heroicas de reis e de guerreiros, nem se reportavam as conversas de aristocratas atenienses com o lazer e o dinheiro para se dedicarem à filosofia. Aqui falava-se de pescadores e de leprosos; falava-se de pessoas desprezadas pela sua baixa condição na sociedade, pelas suas deficiências físicas, pelos seus problemas de saúde mental; falava-se de figuras femininas que não eram as rainhas e princesas da epopeia e da tragédia gregas, mas sim mulheres normais da vida real.”

Apesar de profundamente diferentes de Homero, Sófocles e Platão, “estes textos conquistaram o mundo antigo, tanto grego como romano”:

“São textos que – com a sua mensagem sublime veiculada por palavras cuja beleza desarmante ainda deixa arrepiado quem os leu e releu ao longo de uma vida inteira – estão simplesmente numa categoria à parte.”

Muito já foi escrito sobre essa mensagem sublime, sobre as palavras usadas e sobre a voz que foi dada aos silenciados da história, mas talvez valha a pena acrescentar outro aspeto inovador destas palavras. Enquanto os grandes textos da Antiguidade, fossem os de Homero, Sófocles ou Platão, remetem para o modo como nos comportamos, relacionamos e triunfamos no espaço público, os Evangelhos aplicam-se à vida privada, ao comportamento quotidiano, à necessidade que todos temos de ter uma vida melhor com aqueles que nos rodeiam.

As palavras de Jesus não refletem sobre a condição do rei ou do guerreiro ou da princesa, mas aplicam-se a todos os homens porque compreendem a natureza humana e, no nosso íntimo, somos todos iguais, mesmo que nos chamemos Agamémnon, Aquiles, Sócrates ou Antígona. Jesus procura continuamente que vejamos o que temos em comum: somos seres ambíguos, complexos, volúveis e sofredores. O cristianismo consagrou esta natureza humana numa fórmula simples: somos pecadores, e no sentido amplo da palavra grega hamartía, de falhar o alvo ou errar. Mas essa fórmula simples está carregada de sentido antropológico: porque temos essa natureza, precisamos continuamente de praticar a arte de viver uns com os outros.

É provavelmente esta a razão pela qual o Novo Testamento conquistou o mundo antigo e continua hoje a ser lido por crentes e não crentes. São lições intemporais porque falam sobre a natureza humana e procuram fazer-nos refletir, perguntando, sobre os nossos erros e hábitos por forma a vivermos melhor. Como em Mateus 7:3:

“Porque miras o cisco no olho do teu irmão e não te dás conta da trave que está no teu?”

Ao chamar a atenção para a trave no nosso olho, Jesus deixa-nos pistas fundamentais para a compreensão não só do ato penitencial, com o qual se inicia a Eucaristia, como também do sacramento da reconciliação. É, provavelmente, o mais incompreendido de todos os sacramentos, em particular aos olhos dos protestantes, mas revela-se a mais importante das lições antropológicas. Sobretudo porque, enquanto momento interpessoal, nos obriga a encontrar as palavras adequadas para expressar as nossas falhas – e esse esforço de verbalização amplia o sentido de compreensão pessoal.

Não se trata de um exercício fácil. Parecemos estar biologicamente preparados para pensar que agimos sempre bem e temos sempre razão (o que terá sido um poderoso mecanismo evolutivo), pelo que o nosso corpo manifesta um desconforto visível quando percebemos que estamos errados: ficamos corados, suamos e podemos sentir-nos fisicamente mal.

Não é por acaso que os bons confessionários permitem que a pessoa resguarde o seu corpo da observação alheia direta: a confissão não deve ser um momento de humilhação pública, como os regimes totalitários promovem, mas uma oportunidade para praticamos um hábito ou ritual que nos transforma pela repetição. Afinal, reconhecer o erro é doloroso, mas é uma prática essencial para uma vida que é necessariamente social.

Reconhecer que erramos antes de enfrentarmos os outros, e os seus erros, torna-nos mais tolerantes e compreensivos e menos propensos a exigências desregradas e reações violentas. Quando reconhecemos que também erramos, tornamo-nos mais justos a avaliar os outros porque mais capazes de nos colocarmos no seu lugar. Quando confessamos os nossos erros também nos tornamos mais capazes de ouvir o outro porque sabemos como é importante sermos ouvidos e compreendidos. Tornamo-nos também mais disponíveis para desculpar os outros e viver sem ressentimentos constantes. E se é verdade que, no dia seguinte, temos oportunidade para falhar novamente, podemos sempre tentar fazê-lo na versão de Samuel Beckett, e falhar um pouco melhor.





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