• Sex. Out 18th, 2024

“Porque é que uma escritora jovem tem de ser sempre comparada?” – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Out 18, 2024

Sendo que há uma outra dimensão sobre o trabalho da Marisa. Se por um lado a insatisfaz, também argumenta que se sente uma privilegiada por ter um emprego que é ambicionado por muitos.
Exatamente.

Há quem aspire a um trabalho que, pese embora seja mal pago, seja pelo menos recompensador. Como é o caso da profissão de jornalista, de resto. No livro aborda a questão da saúde mental. Em Portugal há uma taxa de prevalência de 50% de probabilidade de burnout em jornalistas, por exemplo. Como foi abordar estas questões no livro?
Uma coisa que me surpreendeu quando o livro saiu em Espanha foi que muita gente que veio falar comigo era de jornalismo, muita gente que trabalha em agências de publicidade, muito pessoal médico, profissionais de saúde, muitos arquitetos. O que é que estas profissões têm em comum? São muito vocacionais. São profissões que, desde criança, sonhamos: quero ser veterinária, quero ser jornalista, quero ser médico, quero ser arquiteto. Então, efetivamente, há uma mentira. Todos nós, que nos dedicamos ao jornalismo, em alguns momentos da nossa vida escolhemos um salário pior e umas condições piores para estar no sítio em que queríamos estar. Porque é que essas profissões têm mais possibilidades de burnout? Obviamente porque vivem também das nossas ilusões e da nossa motivação. Quando vai assinar este artigo não quer entregar uma merda. Quer entregar uma boa entrevista. Preparou-a ontem, vai escrever um texto que considera que está à altura do que quer trabalhar. Está a colocar muito da sua própria identidade e de quem é. Da mesma forma que um médico não vai voltar para casa sem verificar como está o doente, porque ele pode morrer. Então, sim, acho que as profissões vocacionais têm sido uma desculpa para ir reduzindo as condições de um trabalho digno em troca dessa ilusão.

Teve em algum momento a tentação de ter uma redação como pano de fundo e não uma agência de publicidade?
Não, interessava-me muito a publicidade porque me parecia que dava esta dupla volta. É como uma máscara a mais, uma mentira a mais, uma fumaça. O que ela está a vender é mentira. Está a fazer gente infeliz, está a criar insatisfações para que as pessoas comprem os produtos. Parecia-me um mundo muito interessante. Quando estava a escrever o livro, um pouco antes, chegou às minhas mãos o ensaio Trabalhos de Merda, de David Graeber [2022, Edições 70]. Ele diz uma frase, que a Marisa diz no livro, sobre o que é um trabalho de merda, por definição. Não estamos a falar de trabalhos de lixo, todos sabemos o que é um trabalho de lixo, um trabalho muito mal pago, com más condições. Isso é um trabalho de lixo e não devia existir. Mas um trabalho de merda é um trabalho que ao indivíduo que o faz gera muita frustração, porque, no fundo, sabe que o mundo seria um lugar melhor se o seu trabalho não existisse. Sabe que não é necessário. Ele colocava como exemplo todos esses trabalhos intermediários que de repente se criaram nas empresas. Quando alguém me diz que trabalha numa consultora… Pergunto-me: o que é que realmente faz? Desculpa, mas porque te pagam tanto dinheiro? Para dizer: faz isso, isso está bem, agora tem de plantar muitas árvores… É um banco, todo mundo o odeia, mas se plantar muitas árvores terá o tema da responsabilidade social corporativa. Há muitos desses trabalhos intermédios como é a publicidade, que, no fim, também branqueiam muito o mundo no qual vivemos. Isso gera necessidades, gera ansiedade, nutre-se do desejo, por um lado, dos medos das pessoas e dos desejos das pessoas de alcançar o seu eu ideal. Parecia-me muito interessante que a Marisa trabalhasse nisso. Nunca pensei fazê-lo numa redação, na verdade.

Já que fala das ansiedades, outra questão que aborda é o facto de a protagonista, Marisa, tomar Orfidal.
Está sempre drogada.

Há um problema de consumo e de abuso de ansiolíticos, em Espanha, mas também em Portugal. Portugal é recordista da toma de ansiolíticos, com um consumo cinco vezes superior à média da OCDE. Como foi abordar este tópico sem cair na glorificação, sabendo que se trata de uma epidemia?
Parti de vários pontos. Li algo da OMS que dizia que em Espanha praticamente metade da população está medicada. Mais de 50% com ansiolíticos ou com antidepressivos. Temos um sistema de saúde público, como aqui em Portugal, que está colapsado. Então, muitas vezes, quem diz que lhe dói o peito tem como resposta: você tem ansiedade, tome estes medicamentos. É muito fácil conseguir ansiolíticos. Em muitos casos diagnostica-se ansiedade ou depressão e começa-se a tomar uma série de medicamentos que estão super normalizados. Uma outra coisa que me chamou a atenção, perante uma realidade que se torna insustentável, é que, para mim, o desencanto também tem que ver com a solidão. Este é um tema fundamental. A Marisa está muito sozinha.  Em grandes cidades, apesar de estarmos hiperconectados, estamos muito distantes uns dos outros.

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O livro tem Madrid, uma capital, como pano de fundo, mas podia ser qualquer outra.
Claro. Acontece em Lisboa, em Porto, em Barcelona, em Valência. Há uma epidemia de solidão, as pessoas cada vez se sentem mais sozinhas. Estamos ligados às nossas telas e não temos verdadeiras conexões humanas. Temos trabalhos que cada vez nos exigem mais de nós próprios. Com a tecnologia, um chefe ou um companheiro de trabalho pode-nos escrever às nove da noite. Temos rendas insustentáveis, salários que não sobem. De facto, a vida vai melhorar porque tomamos ansiolíticos. O problema não somos nós, em muitos casos. Uma das reflexões que queria propor é que a Marisa claramente tem muitos problemas mentais, mas alguns são exógenos, alguns vêm de fora. Não são internos. Ela não sabe o que fazer ou como sobreviver. Ela perdeu um pouco essa capacidade. Ela está medicada e mesmo que só dure uma semana, cada vez está pior. Chamou-me muito a atenção como se normalizou nos ambientes de trabalho o tráfico de ansiolíticos. Diz-se “estou nervosa” e há um colega que diz “toma, eu tenho um Orfidal”. Parece-me muito perigoso porque, no final, o que fazemos é ficar adormecidos, andar como zombies pelo mundo, tentando passar o dia até chegar em casa e pôr uma série na Netflix. Ao mesmo tempo, também falo sobre drogas ilegais no livro. É curioso que as drogas ilegais são super penalizadas na sociedade, ninguém se atreve a dizer “bom dia, companheiros de escritório, tomei MD no fim de semana”. Mas as drogas legais estão hiper normalizadas. Pensei: qual é a diferença realmente? Se no final são tudo formas de escape, formas de não estar presente, seja através do farmacêutico ou através do traficante. Interessa-me muito como utilizamos a química, em geral, para nos hackear e dizer: é sexta, estou com amigos, chamo o dealer e perco a consciência até segunda-feira, em que tenho que voltar a trabalhar.





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