Roménia, Natal de 1989. Nas imagens que a televisão internacional transmite ouve-se um homem a trautear a melodia da Internacional e os gritos irados de uma mulher. Tiros e depois vozes masculinas: “Parem de disparar, parem de disparar”. Só se ouve o som, a câmara não chega a tempo de captar as imagens. Quando a transmissão finalmente muda de plano, vê-se uma parede branca cravada de balas e dois corpos no chão: Nicolae e Elena Ceaușescu. Estas imagens finais são as únicas que a televisão romena transmite.
O Presidente da Roménia e a sua mulher foram executados depois de um julgamento sumário, o culminar de dez dias de protestos que puseram fim ao regime autoritário comunista, liderado por Nicolae Ceaușescu desde 1967, parte de uma onde de revoluções anti-comunistas da Europa de Leste no final da década de 1980. As imagens da execução foram recebidas pelas famílias romenas, que se reuniam para celebrar o Natal, com “alívio”, lembra ao Observador a analista romena Oana Popescu-Zamfir que, aos 12 anos, passou a quadra festiva “colada à televisão”.
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Trinta e cinco anos volvidos, contudo, os sentimentos da população romena relativamente a esta sangrenta revolução — que a separa da maioria das revoluções do mesmo período — divergem, tanto pelo conteúdo, como pela forma. Peter Siani-Davies, autor do livro The Romanian Revolution of December 1989 (2005), divide a revolução em duas partes: o pré e o pós 22 de dezembro. Importa então recuar a esta data para perceber como as celebrações pela morte dos Ceaușescu substituíram, em 1989, as celebrações do Natal.
A 21 de dezembro de 1989, a televisão pública romena transmitia em direto o tradicional discurso anual de Nicolae Ceaușescu. De forma muito pouco tradicional, o Presidente é interrompido por manifestantes que gritavam “Timișoara, Timișoara” — o nome de uma localidade na Transilvânia onde o regime tinha ordenado à polícia política, a Securitate, que disparasse sobre manifestantes. Visivelmente atrapalhado, Ceaușescu cala-se, enquanto a mulher o incita a continuar e a emissão televisiva é interrompida, enquanto a ordem é reposta entre os manifestantes.
Foi sol de pouca dura. No dia seguinte, por volta das 11h da manhã, o Exército aliou-se aos manifestantes, que invadiram a sede do Comité Central do Partido Comunista da Roménia e obrigaram os Ceaușescus a fugir. Depois de uma fuga atribulada, reconstruída por Edward Behr no livro de 1991 Kiss the Hand You Cannot Bite, os Ceaușescus são detidos por volta das 14h30 e levados para uma base militar a norte de Bucareste, onde os militares os escondem da Securitate durante três dias.
Ao quarto dia, 25 de dezembro de 1989, chega de Bucareste um helicóptero com membros da recém-formada Frente de Salvação Nacional (FSN), que organizam um julgamento e servem como testemunhas. Trazem consigo dois advogados de defesa, que trocam breves palavras com os Ceaușescus e apelam que seja declarada “responsabilidade diminuída” ou insanidade. “Não o reconheço, não reconheço este tribunal. Só posso ser julgado perante a Grande Assembleia Nacional e perante os representantes da classe trabalhadora”, responde-lhe Nicolae Ceaușescu.
O “tribunal” era na verdade uma sala de aulas na base militar, com secretárias dispostas como se de uma sala de audiências se tratasse. Os únicos juristas na sala eram os dois advogados de defesa — o juiz, o procurador e as testemunhas eram todos militares, um dos quais gravou e transmitiu as imagens — que hoje estão disponíveis online. Os Ceaușescus foram acusados de genocídio, subversão do poder do Estado, destruição de património público, atentado contra a economia nacional e tentativa de fuga utilizando dinheiro do Estado em bancos estrangeiros.