Todos os anos é a mesma coisa. Há sempre um plano para salvar o SNS, que está em crise. Que logo em seguida fica ainda pior. E no ano seguinte tem de ser novamente salvo. Para ficar novamente pior.
Este ano (2024), foi o “Plano de Emergência para a Saúde”. No ano passado (2023), tinha sido “uma das maiores reformas do SNS”, que não passou de uma mudança organizacional, baralhar as cartas e dar de novo, como se substituir as Administrações Regionais de Saúde por Unidades Locais de Saúde mudasse alguma coisa. Aliás, já no ano anterior (2022), fora uma outra mudança organizacional, com a criação da Direcção Executiva do SNS, que também não tinha tido qualquer efeito visível na melhoria ou na “salvação” do SNS.
E poderíamos continuar a andar para trás, ano a ano, sempre assim. O SNS está mal, apresenta-se um plano para o salvar, nada muda e no ano seguinte está pior e surge novo plano.
Para além disto, quando as coisas correm mal, inventam-se sempre desculpas e bodes expiatórios. O último Primeiro-Ministro chamava cobardes aos médicos. A Ministra da Saúde dessa altura dizia que eles tinham falta de resiliência. O Ministro da Saúde que a substituiu desculpava-se afirmando que as coisas no SNS já são assim há 44 anos. A Ministra da Saúde actual fala de falta de liderança.
Está na altura de quebrar este ciclo de crise-desculpas/culpas-plano de salvação-nova crise, etc…
É que eu também tenho um plano para salvar o SNS. E, no pior dos cenários, não irá ser, seguramente, pior do que nenhum dos anteriores.
O meu plano tem apenas 5 medidas. Todas elas são simples de compreender. Simples de pôr em prática. Duvido que alguma delas alguma vez seja aplicada.
Passo a apresentar.
É necessário que os Serviços de Urgência deixem de ter a porta aberta para qualquer pessoa que a eles se dirija. Em Portugal, há uma “walk-in clinic” gratuita em cada Serviço de Urgência. No nosso País, não há qualquer restrição a quem queira fazer uma inscrição numa urgência de um hospital público. A grande maioria das pessoas que o faz não paga qualquer valor. É extraordinário, num País com tanta escassez de recursos.
Na nossa realidade, os Serviços de Urgência são o mais fácil ponto de acesso ao SNS. Mesmo com tempos de espera inacreditáveis, de 6, 12 ou mesmo 24 horas, os Serviços de Urgência são como clínicas abertas, gratuitas ou quase (se somarmos os que estão isentos das taxas moderadoras aos que não as pagam), onde se vai e de onde se sai com uma avaliação por um médico, exames complementares feitos e terapêutica prescrita e efectuada.
Com uma porta aberta a quem queira, os Serviços de Urgência não são geríveis, por muitos recursos que tenham. É necessário haver um filtro. Só deveria ser aceite no Serviço de Urgência quem fosse referenciado pelo Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) ou outra entidade equivalente ou semelhante. Quem vai ao Serviço de Urgência por sua própria iniciativa não deveria ser aceite. Para além disso, os doentes cuja triagem os classifique como não urgente ou pouco urgente (azuis e verdes) também não deveriam ser sequer inscritos e não deveriam poder entrar na urgência.
Que político terá coragem de aplicar esta mudança? Que população a irá aceitar? Nenhum e nenhuma.
Uma remuneração mensal, independente daquilo que se produz, é um conceito bonito no abstracto, mas destruidor no Mundo real. Porque as pessoas não são todas iguais. E os médicos não são todos iguais. Há quem faça mais e melhor e quem seja o inverso. E serem remunerados mensalmente de igual forma uns e outros é perverso e castiga os primeiros e recompensa os segundos, promovendo e incentivando a mediocridade.
Os médicos não podem continuar a ter uma remuneração mensal, fixa, independente dos actos médicos que praticam. Porque sempre houve, há e há-de haver médicos que trabalham mais e melhor que outros. E quando todos são remunerados de forma igual, isso beneficia sempre os que fazem menos e pior. E os outros vão-se embora, ou passam também eles a fazer menos e pior.
Os médicos devem ser remunerados por cada acto médico que realizam, por cada consulta, cada internamento, cada intervenção, tratamento ou exame que façam. Devem receber por aquilo que produzem, e serem livres de fazerem mais ou menos, conforme queiram e possam, e serem remunerados em conformidade. Não é preciso inventar, esta forma de contabilizar o trabalho de cada médico já foi estudada, definida e resolvida em vários países e por diversas entidades. É assim que funciona a medicina privada no nosso País, e não há registo de greves ou recusas nessa área. E, a partir daí, vão ver como muitos problemas, conflitos, queixas e questões se esfumarão e desaparecerão como que por magia…
Quem irá assumir esta mudança? Ninguém. A maioria da nossa classe política, os sindicatos e muita da nossa população é ideologicamente incapaz de aceitar este paradigma, receando mais o “capitalismo” e o “lucro”, do que o funcionalismo público socialista.
Quando um médico está de urgência, uma vez por semana, durante 24 horas seguidas, isso significa que ele não vê os seus doentes internados nem faz consultas ou exames durante esse dia de urgência e também durante o dia seguinte. Ou seja, em cada semana, os doentes internados só são avaliados pelo seu médico responsável em 3 dos 7 dias. Desta forma, é impossível gerir um serviço de internamento com um mínimo de qualidade e de continuidade dos cuidados. Os períodos semanais na urgência são um cancro na vida dos médicos hospitalares e no funcionamento dos serviços.
É essencial existir a especialidade de Medicina de Urgência. Seriam esses os médicos que assegurariam os Serviços de Urgência, sendo que as restantes especialidades seriam chamadas a intervir apenas quando a avaliação já feita do doente determinasse a necessidade da sua actuação. É o que sucede por quase toda essa Europa fora, onde as outras especialidades se podem assim dedicar mais às suas tarefas fora do Serviço de Urgência.
Repetidamente proposta, a criação desta especialidade no nosso País tem sido sempre bloqueada, mais recentemente em Dezembro de 2022. Já este ano, mal foi novamente manifestada a intenção do Governo em criar esta especialidade, de imediato surgiu a recusa e o bloqueio por parte dos médicos. Mesmo que o Governo consiga avançar com esta medida sem a concordância da Ordem dos Médicos, só teríamos esses especialistas em acção, a libertar os outros médicos para as suas tarefas habituais, daqui a 5-10 anos.
Já vamos tarde.
O Estado deve assegurar um sistema de saúde que permita a todos os cidadãos direitos iguais no acesso aos cuidados de saúde. É inacreditável que, com o beneplácito de toda a classe política e passividade da população, existam dois tipos de portugueses: aqueles que são titulares de subsistemas de saúde que lhes permitem o acesso comparticipado à medicina privada, e aqueles a quem essa possibilidade é negada. Uns são beneficiários da ADSE, ADM e semelhantes, os outros dependem da Segurança Social. Todos fazem descontos para o mesmo Estado, mas uns têm direitos, e os outros não. Quem desconta para a Segurança Social só tem direito a cuidados de saúde comparticipados nas instituições do Estado. Quem desconta para a ADSE (e outros subsistemas do Estado equivalentes), tem direito a cuidados de saúde comparticipados nas instituições do Estado e nas instituições privadas também.
A ADSE (ou outro subsistema idêntico) deve ser um direito e um dever, obrigatório para todos, permitindo que os cidadãos tenham acesso por igual, de forma comparticipada, aos serviços de saúde, quer públicos, quer privados. É o que sucede em quase todos os países europeus, desde os francófonos aos germanófonos, com a possível excepção do Reino Unido, cujo sistema de saúde, talvez por isso mesmo, anda pelas mesmas ruas da amargura que o nosso SNS.
Com esta medida simples, abrir-se-á um verdadeiro mercado concorrencial na saúde, pública e privada, que beneficiará todos os cidadãos e incentivará as instituições e os profissionais que oferecerem mais e melhores cuidados. E, no futuro, até se poderá permitir a entrada de subsistemas alternativos à ADSE que, cumprindo determinados pressupostos, possam concorrer e ser alternativas a esta.
Cada um de nós, tendo um problema ou uma necessidade em cuidados de saúde, poderá livremente escolher onde e por quem quer ser cuidado. E não me parece que haja urgências encerradas por falta de médicos nas instituições privadas…
Quem vai aplicar esta mudança? Ninguém. Os partidos de esquerda querem é reduzir a comparticipação estatal da medicina privada, e já repetidamente bloquearam propostas neste sentido. Perante a existência de cidadãos de primeira e de segunda na saúde, em vez de procurarem tornar todos cidadãos de primeira, estes partidos gostariam que todos fossemos cidadãos de segunda. E os partidos de direita parecem ter medo de assumir decisões de ruptura.
O valor que damos às coisas depende de muitos factores. Mas se algo for gratuito, muito dificilmente será valorizado, e é muito mais fácil acabar por ser desvalorizado e desconsiderado. Este é um processo inerente e inevitável à condição humana.
Também na saúde nada deveria ser totalmente gratuito para o cidadão. Comparticipado, sim, gratuito, não. Poderemos discutir a percentagem de comparticipação pelo Estado, e o valor a pagar pelo utente, conforme o medicamento, exame, tratamento ou consulta em questão. Mas nada devia ser totalmente gratuito.
Só que, infelizmente, no nosso País e no nosso SNS, o caminho tem sido o oposto. Nos últimos anos, surgiram a isenção generalizada das taxas moderadoras, os medicamentos gratuitos, os exames sem custos. Nada disto é justo para os restantes cidadãos que pagam. E faz as pessoas esquecerem-se dos custos reais que tudo isto tem e de que alguém, algures, irá pagar. E permite e incentiva a utilização abusiva dos cuidados de saúde por parte de alguns.
Tudo tem custos. O cidadão não tem de arcar com a sua totalidade. Mas deveria sempre pagar, nem que fosse um valor residual, para valorizar e se co-responsabilizar pela gestão dos cuidados que lhe são prestados.
E pronto, aqui está o meu plano para “salvar o SNS e a saúde em Portugal”.
Pode ser que, depois de falhar o plano mais recente, ou quando o Verão for uma catástrofe de urgências fechadas, ou então no Inverno com as inevitáveis infecções respiratórias, internamentos cheios e urgências a rebentar pelas costuras, algo que todos os anos parece surpreender tudo e todos, ou então lá para 2025, quando enfim for necessário outro plano urgente, alguém se lembre destas minhas medidas e queira experimentá-las.
Estas medidas não serão piores do que aquilo temos tido. E já vamos tarde.