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Pedrinho e a medida do sucesso – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Out 24, 2024

O árbitro tinha acabado de apitar para o fim do jogo, daqueles raros que ainda dão em sinal aberto. E, em vez da gramática habitual dos “o mais importante é a equipa”, “o mister é que sabe”, “pensamos jogo a jogo”, “em alta competição, os erros pagam-se caro” e outras tiradas da minuta costumeira, uma figura especial surgiu na flash interview. À primeira pergunta, que já nem importa qual foi, Pedrinho, camisola 10 do Pevidém, pinta de Iván de la Peña, rompeu a chorar: “Não sei o que é que hei de dizer. Só queria agradecer a todos, porque todos sabem o quanto gosto deste clube, o que representa para mim. Tive uma carreira que muitos apelidam de fracassada. Podia ter ido a outros patamares. Mas fui feliz, sou feliz e isso ninguém me tira! Este jogo foi a cereja no topo do bolo, depois deste jogo já me posso retirar.”

A declaração começou em choro, como dizia, mas, embora curta, acabou já num sorriso largo, enorme, quase a não caber nas não sei quantas polegadas do 16 por 9. As lágrimas antes suscitadas ainda a correr rosto abaixo, obedecendo à lei da gravidade e porque não podiam, simplesmente, desaparecer dum instante ao outro, mas não havia dúvida: aqui estava, senhoras e senhores, um homem feliz. Feliz a sério. Sem medo de chorar em directo na televisão, sem medo de falar das expectativas que outros terão tido para ele e que ele não cumpriu, sem medo – lá está, e o que é mais corajoso de tudo – de ser feliz e de o dizer. Façam zapping em busca de outro momento de tamanha honestidade. Que não seja uma tragédia. Um homem feito a chorar e a sorrir de verdade. Que deslumbre.

Dou-lhe o enquadramento: o Pevidém Sport Club, equipa da freguesia de São Jorge de Selho, concelho de Guimarães, que milita no quarto escalão do futebol nacional, tinha acabado de defrontar o Benfica em jogo da Taça. Não ganhou, perdeu 2-0; Pedrinho não marcou nenhum golo, perdeu 2-0; não era uma final, nem uma meia ou uns quartos, ao menos, mas uma ainda muito inicial terceira eliminatória. Mas o Pevidém tinha-se portado com a maior dignidade, disputado a partida no – lá está a gramática – campo todo e saía com a cabeça erguida de quem sabia que, se não fossem à internet ver quem era quem, aquele tinha sido um jogo, praticamente, de iguais.

Hoje por hoje, não há jogador que não tenha pinta de jogador: estampa física, equipamento bonito. Mas foi quando um companheiro rasgou a camisola e foi preciso substituí-la pela de outro, mais ou menos do mesmo tamanho, mas naturalmente com outro nome e outro número nas costas, que se percebeu a diferença. Os “Cavaleiros de São Jorge” são um clube que andou muitos anos pela distrital e chegou, recentemente, ao nacional de seniores, atraiu um investidor japonês que se apaixonou pelo Minho e pediu o campo ao Moreirense porque o deles não estava à altura da ocasião – e o Benfica é o Benfica. São coisas diferentes. Não estariam destinadas a cruzar-se, não fosse o formato romântico da Taça e o Pevidém ter eliminado o Marítimo na segunda ronda, com um penalty aos 120 minutos do prolongamento, transformado em golo por… Pedrinho.

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Pode, então, um homem, nos dias de hoje dizer-se o mais feliz do mundo simplesmente porque jogou com o Benfica e perdeu? Um homem que, provavelmente, nem é do Benfica porque confessou, na mesma entrevista rápida, que o seu maior sonho era ter-se cruzado com Dí Maria ou Otamendi para lhes pedir a camisola, sim, mas do Messi, que esse é que é o ídolo dele?

Vivemos obcecados com métricas e sucessos. Tudo – da escola às redes sociais, do trabalho à religião contemporânea da auto-ajuda – nos orienta para “atingirmos o nosso máximo potencial”. Colocámos exigências desmedidas sobre os nossos próprios ombros. Temos de estudar mais, trabalhar mais, ganhar mais, produzir mais, ter o cargo melhor, a casa melhor, a vida mais interessante, a cara mais bonita, o corpo mais saudável, o passaporte mais carimbado, ser os melhores maridos e mulheres, os pais mais pedagógicos, os amigos mais disponíveis, os cidadãos mais exemplares. Da arte aos negócios, a lógica do “go big or go home” tomou conta de tudo.  Tudo se conta por número de fãs, seguidores, gostos, visualizações, partilhas, gigas, polegadas, kapas, euros, muitos kapas e muitos euros. Vive-se e morre-se por se ser “relevante”, “icónico”, “influenciador”, “viral”. Nada é suficiente porque, por definição, mais e melhor é sempre possível – e ai de quem não persiga eternamente esse mais e melhor. Ser insatisfeito, note bem, tornou-se uma qualidade. As pessoas gabam-se de terem “fome”. Foi preciso chegarmos ao nosso deslumbrado século para não nos apercebermos do paradoxo evidente. Como pode a insatisfação ser confundida com felicidade?

E eis um homem que não teve medo de falhar. De desiludir. Que não teve pressa nem se deixou esmagar debaixo da responsabilidade auto-infligida de “tirar o máximo de si mesmo”. Um homem que nunca tínhamos visto na vida, mas que falou naquele sábado à noite como se toda a gente o conhecesse. Que podia ter chegado mais longe, jogado mais alto, marcado mais golos, ganhado mais dinheiro. Mas mais feliz? Poderia ter sido?

Pedrinho, aliás, Pedro Manuel Costa Lopes, médio ofensivo, vagabundo, à antiga, um metro e 65 e alguns títulos nas distritais, nasceu há 33 anos ali, em Pevidém. Andou pelas camadas jovens do Guimarães, aliás, Vitória Sport Clube, mas depois voltou para o clube da terra, por onde ficou nos 20 anos seguintes, salvo quatro que andou pelo Barrosas. De dia, é recepcionista num ginásio, antes vendeu gomas num quiosque e foi repositor num supermercado. E, para quem achar que aquele momento na flash interview da RTP foi uma coisa que lhe saiu, vale a pena procurar a entrevista que deu ao site Zero Zero ainda antes do jogo, no mesmo dia em que comprou um Nissan Micra de 98 por 250 euros. Acerca do penalty decisivo contra o Marítimo, declarou esta verdade simples: “Foi a coisa mais fácil do mundo. Fui em piloto automático porque ia ser herói se marcasse.” E sobre a tal carreira que podia ter tido: “Estou a representar os meus, a vila onde nasci. Eu poderia sair do Pevidém, mas onde é que seria tão feliz como sou aqui? Se calhar em lado nenhum. Olhar para a bancada e ver os meus amigos… Acabar a carreira aqui é ponto assente.”

O Pevidém-Benfica, a contar para a terceira eliminatória da Taça de Portugal 2024/25 deu em sinal aberto, na RTP1. O jogo não foi nada por aí além, mas a verdadeira taça, o verdadeiro serviço público de televisão foi este que aconteceu já depois do apito final: mostrar-nos um homem feliz, a chorar de alegria, em horário nobre. Para dizer aos miúdos lá em casa que não é preciso ser o Ronaldo para se ser feliz. O que é preciso é saber que Micras ou Ferraris não são quem somos, mas apenas os carros que conduzimos – e ter sempre amigos a ver-nos na bancada.





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