para uma outra Maria
Qual áugure traçando no ar com a ponta do seu lituus o espaço imaginário do templum – aquele pequeníssimo quadrado imaginário onde voo das aves era observado – a pintura de Fra Angelico não pode ser compreendida fora do mundo agitado do primeiro renascimento – aquele mundo ávido em que a arte aspirava a reflectir o mundo real e em que os pintores começavam a já não se contentar com a representação catequética de temas religiosos. Se é certo que toda a sua obra gira em torno destes temas e é expressão do seu sincero amor pelas verdades de uma fé em que cria fervorosamente e cujas histórias não se cansava de ouvir e contar, não é menos verdade que ele se aproxima desse mundo de uma forma nova – para celebrar a beleza e os dons da vida. Talvez por isso nenhum outro tema lhe fosse mais caro do que o da Anunciação, que pintaria diversas vezes ao longo da vida e que resume a sua conceção de arte enquanto vínculo entre o divino e o humano.
Não há nada de terrível nos doces e trémulos anjos de Fra Angelico. Na verdade, se ignoradas as vestes e as asas, os seus rostos e gestos são semelhantes aos nossos. Emitem luz, é verdade, mas não acontece o mesmo com todas as personagens das suas pinturas? Em A Anunciação (sobretudo a que se encontra no Prado), uma pomba atravessa, seguindo o rasto de um raio dourado, o Jardim do Éden até alcançar o rosto e o peito de Maria, que adopta uma atitude de entrega absorta. Mas a luz nesta pintura não provém apenas deste raio divino. Um leve feixe de luz dourada entra pela janela atrás da coluna e o próprio anjo brilha. Na realidade, a luz está em tudo, como se fosse ela a qualidade mais íntima de tudo quanto existe, não apenas dos seres, mas também dos objectos e das plantas.
Basta olhar para Maria. O seu corpo, os seus cabelos e as suas mãos brilham, tal como o seu vestido. E brilha, não apenas como se recebesse essa luz de algum ponto exterior, mas como se dela mesma brotasse. O próprio anjo parece surpreendido ao vê-la, como se duvidasse da sua missão ou espreitasse, através do gesto luminoso de Maria, uma realidade mais profunda e comovente do que aquela que ele mesmo representa. Este consentimento, esta disponibilidade silenciosa, esta mistura de gratidão e graça, este mundo de luz que tudo ensopa chama-se piedade. E a piedade e a luz são os grandes protagonistas de toda a obra de Fra Angelico.
As suas pinturas parecem pertencer ao reino da fábula, mas Fra Angelico pinta-as com o olhar de quem se detém a contemplar coisas reais. Talvez um olhar assim seja aquilo a que chamamos um olhar poético, por a poesia ser afinal o realismo supremo. E toda a arte de Fra Angelico parece sumamente dominada por um semelhante apetite de realidade. É isso que significam as duas mãos cruzadas de Maria sobre o peito: “Quero ser real”. É curioso que o anjo e Maria façam o mesmo gesto. Na realidade, as mãos recolhem-se, enovelam-se, formam um casulo: um casulo de seda. E não será isso o que todos os amantes procuram – recolher-se, transformar-se num casulo nas mãos do outro?
E que diz Maria?: “Farei do meu corpo um casulo, um lugar de aparição”. E que responde o anjo? “Quero parecer-me contigo.” É por isso que ele se inclina como ela, cruza as mãos e imita cada um dos seus gestos, como se apenas aspirasse a ser um reflexo seu. Talvez a arte de Fra Angelico atinja nesta pintura o seu momento mais sublime, pois faz do coração da menina visitada pelo anjo o verdadeiro centro da cena encantada. Como se nos viesse dizer que o verdadeiro mistério não está naquele raio dourado, mas dentro da menina que o recebe. Melhor, como se o anjo o soubesse e por isso se curvasse diante dela em silêncio, e aquilo a que chamamos sagrado não fosse mais do que a qualidade mais indefinível e profunda do humano.
É certo que esta Anunciação, com a sua obsessão pelo dourado, luminosidade sublime e atmosfera cortês, deve muito ao mundo das iluminuras góticas mas o seu tom é já muito diferente. Toda a pintura parece ter uma qualidade mental, como se Fra Angelico estivesse a pintar não uma cena real, mas o pensamento de quem a vê. Não o mundo, mas os nossos pensamentos sobre ele.
Ora, em grego, νόησις (noesis – compreensão) e νόστος (nostos – regresso) provêm da mesma origem: pensar é regressar, é lamentar. Arrepender-se é ver ainda e sempre o que já não está diante dos nossos olhos. É a fome que alucina aquilo de que sente falta. É o amante que vê ainda e sempre o corpo amado que nunca, afinal, chegou a ser seu. Pensar, desejar, sonhar têm por base um regressar, um vir que não cessa, um souvenir que persiste sob o venir dentro de tudo o que acontece em todos os nossos adventos. Um passado os fundou. Corpo perdido e outrora são afinal contíguos.
Neste quadro, Maria e o anjo deixam de ser figuras alegóricas, representando ideias espirituais, para se tornarem ternas personagens de uma bela e misteriosa história. No entanto, nem as histórias nem a poesia surgiram para nos separar da realidade, mas antes para nos permitir adentrar-nos nela. É isso que representa este quadro: aquele momento único em que realidade e verdade deixam de contradizer-se. É claro que Fra Angelico, ao pintá-lo, não podia saber de nada disto e limitou-se a servir piedosamente uma história em que cria.
Mas o que torna esta pintura inesquecível está para além das intenções do seu autor, chegou até nós flutuando como um baú nas águas do tempo. Uma arca que continua a ter o poder de encantar os espectadores de hoje. Como é possível que continuemos a emocionar-nos com uma cena tão maravilhosamente pueril? Não é assim tão estranho se pensarmos que o que Fra Angelico faz é transmitir-nos uma verdade humana essencial usando temas do seu tempo. Porque embora a ideia de um anjo que visita a terra para anunciar a uma menina que vai ser mãe de um Deus Menino nos possa parecer uma história sublime, algo nos diz que, tal como acontece com todas as narrativas, esconde algo que não pode ser desconsiderado. E bastar-nos-á deter o olhar nesta Anunciação para perceber o que é: o mistério da encarnação não é outro senão o mistério do amor humano, e é por isso que uma pintura como esta continua a fascinar-nos. Tal é o outrora: que aquilo que esquecemos não nos esqueça nunca.
Cocteau refere algo semelhante em A Bela e o Monstro, quando, comentando o trabalho do grande fotógrafo Alekan no seu filme, escreve: «Henri alcançou um estilo sobrenatural dentro dos limites do realismo. É a realidade da infância. O país das fadas sem fadas.» Nesse país, anjos e mães dispensam aos nossos sapatos desapertados, aos cabelos em desalinho e à nossa ingénua alegria diante da eterna avidez do tempo, a mesma atenção, cuidado e mão que se dispensa aos aromas que se libertam da panela sobre a trempe. Porque o maravilhoso não é algo que questiona aquilo que acreditamos ser, mas antes a qualidade mais íntima e decisiva de quem somos.