Dentro de pouco tempo iniciar-se-á o que deveria ser sempre um momento alto na vida de um partido liberal: uma campanha democrática e plural para a liderança. Dos partidos representados na Assembleia da República, apenas os dois maiores têm eleições internas verdadeiramente abertas e com candidatos disponíveis para debater publicamente.
O PCP tem um processo de decisão fechado. O BE e o Chega não dão espaço a qualquer tipo de oposição interna, não aceitando, por exemplo, qualquer debate. O Livre tem um sistema aberto e democrático, mas suficientemente confuso cá para fora para resultar, na prática, em terem sempre o mesmo líder. O CDS e o PAN são, hoje, demasiado pequenos para terem algum tipo de disputa interna relevante. Num partido como a IL, que se queixa legitimamente de falta de atenção mediática, as eleições internas são uma oportunidade para o partido se dar a conhecer pela positiva, para servir como exemplo a todos os outros partidos de como um processo democrático interno e respeitador deve ocorrer. Um micro-cosmos da democracia liberal que defendemos no país e no mundo.
Não estarei certamente a ser polémico se disser que esse objetivo não foi cumprido há dois anos nas primeiras eleições para a liderança com mais do que um candidato. Foi um processo traumático, cujas cicatrizes se prolongaram para lá da data das eleições e cujas consequências negativas se sentem até hoje. Perdeu-se uma oportunidade de projeção positiva do partido e acabou-se com o efeito exatamente oposto. Não podemos permitir que isso volte a acontecer.
No livro “Como morrem as democracias”, os autores apontam quatro comportamentos que colocam em risco as democracias. Um deles é a negação da legitimidade do adversário, a alegação de que os adversários políticos são subversivos ou constituem uma ameaça existencial. A erosão da tolerância mútua pode motivar as pessoas a abusar dos meios para derrotar os adversários. Quando o preço de perder é percepcionado como sendo demasiado elevado, quando os adversários são vistos como inimigos mortais, os meios para os derrubar passam a ser ilimitados.
Nessa campanha ouviu-se demasiadas vezes a convicção de que o outro lado iria destruir o partido, erodindo a tolerância mútua e a autorestrição necessárias ao funcionamento de uma democracia interna. Se o argumento da ameaça existencial é perigoso em qualquer circunstância, ele é particularmente tonto neste caso. Tínhamos de ambos os lados pessoas que tinham sido candidatos em lugares de destaque em eleições nacionais e locais, pessoas que até há uns meses se tinham apoiado mutuamente entusiasticamente e feito parte do círculo próximo umas das outras. Acusar pessoas que se escolheu ou se apoiou meses antes, com quem se fez campanha, por quem se apelou ao voto, de poderem destruir o partido, para além do maniqueísmo absurdo, sinaliza péssima capacidade de julgamento. Se eram assim tão maus, por que foram entusiasticamente apoiados ou escolhidos no passado recente?
Desta vez, teremos como candidatos mais prováveis as mais recentes escolhas do partido para primeiro-ministro e presidente da república. O eleitorado iria entender mal se uma parte substancial do partido acusasse alguma destas pessoas de estar a destruir o partido ou poder vir a fazê-lo. Cada pessoa terá a sua legítima opinião sobre quem será o melhor candidato para o futuro do partido, quem é o mais ou menos competente, o mais ou menos carismático, mas convém partir da premissa essencial numa democracia saudável de que nenhum deles irá destruir o partido, nenhum deles traz uma ameaça existencial. Esta premissa é essencial para depois garantir que os meios usados para combater os adversários políticos são os legítimos numa democracia liberal.
Se em todos os aspectos da nossa vida, a tolerância é importante, na vida política ela assume uma importância adicional. E não é apenas tolerância em relação às escolhas individuais, mas também em relação às características individuais, aos defeitos e qualidades. É importante entender que pessoas boas e capazes de contributos positivos podem tomar más decisões ou ter más atitudes baseadas em impulsos sem que isso as desqualifique eternamente.
Esta tolerância é particularmente importante quando se lida com pessoas num ambiente político e partidário porque a proximidade ao poder e a exposição pública transformam as pessoas. A exposição pública e o exercício do poder aumentam os níveis de ansiedade, de vaidade, de calculismo, de polarização e de comportamento controlador.
Todas as pessoas que passam por esta vida acabam alteradas de alguma forma, mas os efeitos acabam por ser mais notórios em pessoas que naturalmente já tinham alguma destas características mais desenvolvidas. A proximidade do poder eleva essas características a novos patamares. Pessoas naturalmente ansiosas tornam-se paranoicas. Pessoas naturalmente vaidosas tornam-se narcisistas. Pessoas naturalmente calculistas tornam-se maquiavélicas. Pessoas naturalmente clubistas tornam-se maniqueístas. Pessoas naturalmente controladoras tornam-se autoritárias. É da natureza humana adaptar-se ao ambiente, ser transformado por ele, e não adianta acreditar que qualquer um de nós está imune a essas alterações de personalidade. Não está. Eu não estou certamente. Normalmente são aqueles que mais se dizem imunes a essas alterações de personalidade que as exibem com maior intensidade. Todas as pessoas expostas ao poder e à exposição pública, mudarão a sua forma de ser e agir, em maior ou menor grau. A única forma de o evitar totalmente é não entrar na política. Mas alguém tem de entrar e, nesse caso, tudo o que podemos fazer é tentar limitar essas alterações. Estar consciente delas é um primeiro passo para as atenuar, mas nunca conseguiremos impedi-las completamente de atuar sobre nós, nem esperar que elas não atuem sobre os outros.
Estar no poder, ou próximo dele, com a exposição pública inerente, afeta inevitavelmente a personalidade, e é necessário um autocontrolo quase sobre-humano para resistir a essas transformações. Também por isso, é importante perceber e lidar com essas alterações nos outros, não ter expetativas irrealistas em relação aos outros. É importante em cada altura perceber que algumas ações negativas dos outros são resultado de paranoia natural de quem está na política e não, necessariamente, maldade. Responder na mesma moeda apenas escalará o conflito, justificando a paranoia inicial.
Perceber as alterações de personalidade que a proximidade do poder traz também implica tolerar e desvalorizar a arrogância e a vaidade desproporcional de uns, por muito irritante que seja, e distanciar-se de quem ficou irremediavelmente maquiavélico ou maniqueista. Ser liberal, social-democrata, socialista ou conservador, pertencer a um qualquer clube, não é uma garantia de ser boa (ou má) pessoa. Duas pessoas pertencerem ao mesmo grupo também não garante que tenham personalidades compatíveis. Mas serem pessoalmente incompatíveis também não afasta a possibilidade de poderem contribuir separadamente para o mesmo objetivo. É perfeitamente possível duas pessoas trabalharem de forma construtiva para um mesmo objetivo sem interagirem ou colaborarem diretamente se as suas personalidades forem incompatíveis.
Pensar, como eu penso, que é possível ter centenas de pessoas a colaborar para um mesmo objetivo comum não depende de se acreditar numa utopia em que todas essas pessoas são bondosas e altruístas, nutrindo profunda amizade umas pelas outras. Depende apenas de acreditar, como eu acredito, na possibilidade de pessoas com motivações e personalidades diferentes poderem, ainda sim, colaborar para um fim comum.
Aceitar as mudanças que o poder e a exposição pública trazem às pessoas não implica uma tolerância infinita, claro. Nem para os outros nem, especialmente, para si próprio. Um desafio útil é colocar-se como espetador externo dos seus comportamentos. Imaginar-se na pele da pessoa que era antes de entrar na política e de que forma essa pessoa julgaria cada um dos seus comportamentos presentes. Se com demasiada frequência esse espetador externo se sentir desconfortável com esses novos comportamentos, o melhor é afastar-se desta vida, não permitir que as transformações trazidas pela política se tornem parte definitiva da sua personalidade.
A retórica inflamada das últimas eleições internas deixou cicatrizes profundas, divisões insanáveis e limitou o crescimento do partido. Em todos as fações haverá pessoas mais dadas a retórica inflamada e à utilização de táticas moralmente questionáveis. Faz parte da diversidade humana que em grupos suficientemente grandes existam pessoas com bússolas morais temporariamente ou permanentemente avariadas. Caberá aos candidatos terem a coragem de se distanciarem dessas pessoas e das suas atitudes, principalmente quando sentem que são beneficiados por elas. Se não o fizerem, serão justamente coresponsabilizados pelas suas ações. Não ser o autor material de truques sujos que o beneficiam não desresponsabiliza ninguém moralmente nem politicamente, se puder ter feito algo para o evitar.
Se a tolerância com pessoas é importante para uma campanha saudável, a tolerância ideológica também é. Faz parte de qualquer partido maduro ter fações ideológicas. Todos os partidos de alguma dimensão têm pessoas com uma opinião sobre determinado tema que embaraçaria outras pessoas no mesmo partido. Nunca conheci uma pessoa que concordasse com tudo o que o seu partido defende (eu próprio fui presidente da IL quando constava no programa político a abolição do IMI, algo com que discordo). Mas da mesma forma que as posições de um partido não vinculam totalmente os seus membros, as posições individuais dos membros não vinculam o partido. Não vinculando o partido é, ainda assim importante ouvi-las e permitir que as expressem em liberdade.
Qualquer partido grande, ou que aspire a crescer, terá sempre fações ideológicas, grupos que não estando no centro ideológico do partido, ainda assim sentem-se mais confortáveis nesse partido do que noutro qualquer. Inevitavelmente, algumas dessas franjas estarão distantes entre si. Em muitos temas, pessoas de uma franja sentir-se-ão mais próximas de pessoas de outros partidos do que de outra franja distante do mesmo partido. Mas isto não quer dizer que não estejam no lugar certo. As pessoas de Bragança continuam a ser portuguesas, mesmo que estejam mais perto de Madrid do que de Lisboa. As pessoas de Viana do Castelo e de Vila Real de Santo António pertencem ao mesmo país, mesmo que convivam mais com espanhois junto à sua fronteira do que umas com as outras.
Aceitar que um partido tem franjas significa que, mesmo não representando o centro do pensamento do partido, elas são bem-vindas e devem poder ser ouvidas. A IL não é um partido libertário, mas deve ser um partido onde libertários se sintam à vontade para expor as suas ideias em relação à dimensão do estado. A IL não é um partido liberal-conservador, mas deve ser um partido onde os liberais-conservadores se sintam confortáveis em expor as suas ideias sobre os riscos para o direito à vida de uma lei da eutanásia. A IL não é um partido liberal-social, mas deve ser um partido em que os liberais-sociais se sentem à vontade para defender discriminação positiva para determinados grupos ou impostos sobre heranças. Muitas das ideias defendidas por estas franjas nunca chegarão ao centro de pensamento do partido, mas isso não implica que não possam ser expressas livremente sem rejeições puristas. Nenhuma destas franjas alguma vez terá na IL o partido que idealizam, mas devem ter na IL aquele partido que, tudo somado, mais se aproxima deles e, acima de tudo, um partido onde se sintam livres para defenderem as suas posições, mesmo (ou principalmente) quando não são as posições oficiais do partido.
Um partido que abdique das suas franjas abdica de crescer e, acima de tudo, abdica dos benefícios que resultam da discussão aberta. As franjas têm o benefício de estarem normalmente mais atentas a determinados temas do que o mainstream do partido. A IL não é um partido libertário, mas foi útil a voz libertária dentro do partido quando por medo ou pressão social havia o risco de cedência a algumas restrições à liberdade individual inúteis e absurdas durante a pandemia. A IL não é um partido liberal-conservador, mas foi útil a voz liberal-conservadora nos contributos para uma lei da eutanásia que garantisse que a decisão do doente fosse sempre consciente e não condicionada por terceiros, impedindo o horror de um dia ter o estado português a matar alguém contra a sua verdadeira vontade. A IL não é um partido liberal-social, mas foi útil a voz liberal-social para chamar a atenção para o drama das pessoas com doenças crónicas como a endometriose ou a importância de investimentos públicos no setor dos transportes para o desenvolvimento do país. Não sendo a IL o partido ideal para nenhuma destas franjas, seria um desperdício intelectual perdê-las completamente ou calá-las nas discussões internas.
Ao contrário de outras ideologias, o liberalismo não é uma ideologia utópica. Também não aspira a criar um homem novo despido da sua natureza humana. É uma ideologia que aceita a imperfeição como algo inerente à realidade. O liberalismo não aspira a um mundo perfeito, aspira a um mundo cada vez melhor. A lógica de pensamento para o mundo e para o país deve aplicar-se também ao partido. O partido nunca será perfeito para ninguém, será sempre composto por pessoas diversas, com diferentes personalidades e motivações, algumas das quais incompatíveis entre si. Esperar o contrário é utópico e o caminho mais rápido para a desilusão e o conflito. Entender a natureza humana implica saber gerir e tolerar as suas imperfeições, especialmente aquelas que são agravadas pelo stress da prática política e exposição pública.
As eleições internas podem ser uma festa da democracia, contribuir para projetar uma imagem positiva da IL e do próprio liberalismo. As circunstâncias, a inexperiência e alguma imaturidade impediram que isso acontecesse da primeira vez. Temos agora uma segunda oportunidade. Não a podemos desperdiçar.