Escolho as palavras de Cícero para iniciar esta humilde reflexão: “Certifica-te que és um fator de soma na vida das pessoas de quem participas” (Cícero). A mundividência de Cícero muito nos ajuda a perceber e analisar os tempos actuais. Para ele, o Homem existe e distingue-se sempre e desde que esteja ao serviço do seu próximo, sempre que é capaz de aportar valor e significado à vida do outro, sempre que é capaz de ser “fator de soma” na vida das pessoas de quem ele se cruza.
Se olharmos com a devida atenção, reconhecemos que os tempos actuais estão muito marcados pela afirmação dos extremos, pela polarização das tendências e por uma comunicação cada vez mais binária (ou-ou), ao invés de uma comunicação que deve ser mais inclusiva e humanista (e-e).
Somos hoje convidados – de forma enganosa, diga-se – a construir a nossa identidade por meio da fomentação da autonomia, da positividade ou do ‘seja você mesmo’. Até aqui tudo bem. Porém, esta construção, ao invés de se alicerçar nos valores humanistas e altruístas, edifica a identidade através do consumo ou da capacidade que cada um é capaz de aportar à sua vida. Veja este exemplo: quantas vezes não vemos identidades construídas e sustentadas a partir das ‘marcas’ usadas – como roupa, acessórios ou automóveis – ou de um estilo de vida marcado pelo consumo ou hiperconsumo? Gilles Lipovetsky é muito sagaz ao apontar que os tempos modernos são marcadamente consumistas e geradores de hiperindividualismos.
Este hiperindividualismo da cultura dominante transforma a pessoa humana num ser que, além de se entender e compreender como ser em relação e aberto ao outro, se centra e se foca, apenas e só, no seu ‘eu’, nos seus interesses, nos seus desejos, nos seus ‘quereres’. Só existe ele. Não há lugar para o outro. Ademais, o outro torna-se um opositor, um adversário, um inimigo ou um alvo a abater. O outro é o bloqueio do meu ego. Estou certo que cada um de nós já se apercebeu, ou vai apercebendo-se, que este processo aniquila a matriz relacional a que a pessoa humana tem por vocação e missão.
Portanto, a hipermodernidade manifesta-se através do hiperconsumo e do hiperindividualismo. Mais, gera em cada um de nós um desassossego permanente de ter, de consumir o último grito, de estar ‘na crista da onda’, de pautar o nosso bem-estar no consumir e na satisfação imediata dos nossos desejos. Parece que não há tempo para ter tempo. Parece que já não há tempo para saber esperar, para saber aguardar e dar tempo ao tempo das coisas. Parece que o ‘não’, não existe. Talvez só exista mesmo tempo para dizer afirmativamente: eu quero, eu tenho. É a imposição do desejo e do egoísmo como mecanismos construtivos da identidade pessoal e colectiva.
O Papa Francisco, na sua mais recente Carta Encíclica “Dilexit Nos”, é perentório ao afirmar que o tempo hodierno deve resgatar a beleza ontológica do “coração” e, deste modo, desafiar-se a lutar “contra a tentação da superficialidade, de viver apressadamente sem saber bem para quê, de nos tornarmos consumistas insaciáveis e escravos na engrenagem de um mercado que não se interessa pelo sentido da nossa existência” (Dilexit Nos, 2).
Num mundo assim, jamais haverá espaço ou lugar para o outro, para a relação, para a conecção com a vida e com o mundo, para abertura à novidade e ao encanto dos encontros, para o crescimento e para o desenvolvimento na partilha e na multiplicação dos dons e ministérios, para a construção de uma vida pautada pelo altruísmo e pela solidariedade, para a edificação da existência sob o pêndulo do amor genuíno, doador e gerador de vida, de sentido e de significado, para que Deus ocupe o seu lugar no lugar que é somente d’Ele e que o coração e a alma possam sentir-se eternamente abraçados pela ternura e pelo amor divino.
Esta forma de ser e de estar, centrada, essencial e preferencialmente, no ego, impede que haja a vontade de comungar projectos colectivos, a vontade de tirar do seu tempo e da sua vida e, generosamente, oferecer-se em ordem a um bem maior e ao bem-comum.
O hiperindividualismo promove o hiperconsumo e este assume-se como âncora do ‘status’ moderno e actual. Enchermo-nos de coisas significa esvaziar-nos de nós mesmos e deitar fora o tesouro que em nós habita. Isto pode torna-se num padrão perigoso que faz com que o homem se incline sobre si mesmo, incapaz de se dar, de escutar o outro e com ele aprender a ser mais, a desenvolver-se e a tornar-se vida, quer na sua própria vida, quer na vida dos demais. É preciso, pois, contrariar esta tendência de um certo fechamento em nós mesmos e de uma busca de sentido e de felicidade que julgamos estarem nas coisas e na compra de mais e mais coisas. Tudo parece estar à venda: até a felicidade ou a falta dela. Já se apercebeu quantos comprimidos compramos para a felicidade ou falta dela, para a ansiedade ou para a insónia? A verdade é que, num mundo tão egoíco como este, nós vamos sentindo e percebendo o quão sós, vazios e perdidos nos encontramos hoje. Construímos castelos e barreiras tão altas e tão impenetráveis que ficamos reduzidos à escura solidão do nosso ego. Isto é apavorante! Temos medo da solidão: de chegar a casa ao fim de um dia de trabalho e não ter com quem partilhar o dia, os anseios e os projectos, os sonhos e os medos, de ter quem me escute e que me olhe com predilecção e estima. Leandro Karnal, no livro “O dilema do porco-espinho, como encarar a solidão”, é perspicaz fazer a distinção entre solidão e solitude. A solidão mata. Ao passo que a solitude abre a porta para o conhecimento de mim mesmo e à descoberta de quem eu sou. Esta assunção de quem sou, dos meus medos e sonhos faz-me perceber três coisas: primeiro, quais as narrativas que uso para marcar e construir a minha identidade; segundo, que sou carente e necessitado de alguém que por mim queira dar a sua vida, transformando e potenciando todo o tesouro deixado por Alguém no meu coração; e, terceiro, que sou o resultado de um dom maior do que eu, de Alguém que me projecta, me molda e que me imprime um sentido e uma missão. (Esse Alguém tem para mim um nome: Jesus Cristo, encarnação visível de Deus e visibilizada na sua Palavra e na presença real no Santíssimo Sacramento).
Ora, o estar só, o estar sem relação com alguém, num fechamento em si, numa forma de viver a vida a partir da construção da minha identidade e posicionamento social na aquisição de marcas e padrões consumistas, hedonistas e narcisistas, conduz, inevitavelmente, à perda de autonomia e de liberdade, a uma espécie de escravidão dos apetites, a um viver de sombras e migalhas, a um contentar com pouco, a querer tudo não tendo tempo para nada, a viver o tudo sem viver o agora.
Esta forma de estar escraviza-nos, tornando-nos dependentes e facilmente manipuláveis. Parece que não passamos de uma espécie de mercadoria ou de algo que só existe – e, nisso, encontra a sua razão e pertinência no quadro social – se comprar e se tiver determinado produto, serviço ou bem. Apercebemo-nos disto mesmo quando vemos as reacções, de tantos e quantos, ao saberem da última (e dita derradeira!) proposta do mercado que lhe promete status, felicidade e assentimento social.
Este fenómeno é deveras interessante. Conseguimos perceber, até connosco próprios, que há em nós um gigantesco desejo e vontade por novidade, por fruições rápidas, aceleradas e descomprometidas. Vejamos este exemplo: quem de nós nunca puxou um vídeo no ‘streaming’ ou no Youtube colocando no 2x ou no 4x sem nunca prestar atenção e interesse ao decorrer normal do vídeo? Ou então, quantas vezes não corremos os vídeos do Youtube em busca de algo diferente e distinto, mas que, na verdade, passamos largos minutos a correr a lista sem nunca encontrar o que nos satisfaz? Outro exemplo: quantas vezes queremos ver um vídeo na Netflix e, no meio de tanta oferta, passamos quase uma hora à procura de um, acabando por não ver nenhum? Estas questões que coloco têm como objectivo provocar o leitor e levá-lo a refletir sobre si próprio, percebendo, por um lado, como é que a hipermodernidade pode, activamente, influenciar, condicionar e sustentar a forma de estar e de ser do mesmo, e, por outro lado, reconhecer o quão determinado e influenciado ele se (pode) encontra com esta cultura dominante.
Na verdade, há algo em comum neste nosso modo de ser e de estar: a sensação que fica é que parece que não temos muita ‘paciência’ para ouvir até ao fim, para escutar com atenção, para parar e fazer silêncio, para nos contrariar nos ritmos alucinantes e acelerados em que vivemos, em saber parar e saborear cada instante, cada momento e cada ocasião na sua mais simples realidade.
Nós somos assim mesmo. Somos seres sempre insatisfeitos e inquietos. Vemos isso nas nossas próprias vidas. Procuramos, quase, infinita e indefinidamente, por algo que nos sacie e nos console, ficando sempre em nós um certo ‘amargo de boca’. Sentimos que não é ‘o tudo’. Interessante isto! Na Teologia, aprendemos que o Homem tem nele uma sede de infinito e que esta sede só encontra resposta em Deus, só n’Ele encontra saciedade. Todavia, o caminho espiritual é bem diferente do caminho do mundo. A lógica do sucesso contrapõe-se à lógica da humildade e do serviço. O sucesso, na espiritualidade cristã, é resultado de um esvaziamento do ego, das suas expressões e carências, e o deixar-se encher de Deus, deixar-se conduzir por Aquele que conduz à Cruz.
Belamente, o Santo Padre, o Papa Francisco, nos relembra esta triste realidade de que “hoje tudo se compra e se paga, e parece que o próprio sentido da dignidade depende das coisas que se podem obter com o poder do dinheiro. Somos instigados a acumular, a consumir e a distrairmo-nos, aprisionados por um sistema degradante que não nos permite olhar para além das nossas necessidades imediatas e mesquinhas. O amor de Cristo está fora desta engrenagem perversa e só Ele pode libertar-nos desta febre onde já não há lugar para o amor gratuito. Ele é capaz de dar coração a esta terra e reinventar o amor lá onde pensamos que a capacidade de amar esteja morta para sempre” (Dilexit Nos, 218).
Este propósito transportar-nos ao compromisso de assumirmos a nossa própria fraqueza, carência e a dependência como parte de nós e que, repito, não existem para nos condicionar ou manietar. Antes, existem para nos apercebermos que somos capazes de ultrapassar e ampliar a nossa vida em ordem a uma existência mais livre, desprendida e comprometida com as verdadeiras e reais necessidade da vida e da existência, sempre na lógica da edificação do bem-comum e na construção de uma sociedade humanista e humanizadora de rosto humano. Por isso, fica a questão de fundo. Perguntemo-nos: sou eu fator de soma nesta cultura da hipermodernidade?