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Seguro que dói – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Nov 4, 2024

Viver em Portugal através dos olhos da comunicação social é como ser transportado para um cenário idílico de turismo: ruas imaculadas, o sol a aquecer a cidade e o aroma inconfundível dos pastéis de nata que acabaram de sair do forno. Nesse imaginário, vou entrando no meu duplex na Rua Garret ou na Avenida Almirante Gago Coutinho com a preocupação máxima de garantir que o meu SUV entra em segurança na garagem privada. Saio de casa para o café na pastelaria centenária, onde as maiores inquietações giram em torno de detalhes irrelevantes – como se o expresso vem adoçado ou se o pedido foi entendido perfeitamente em português pelo empregado. E assim, sigo para o escritório, onde espero que o ruído dos carros na avenida disfarce o zumbido do ar condicionado central.

A rotina é confortável, emoldurada pela serenidade das ruas nobres e pela tranquilidade do bairro. O trânsito me acompanha na hora de deixar os filhos no colégio francês, ou em qualquer outra escola internacional, para deixar os que me tratam por você e se despedem com um “A mãe vem buscar-nos a que horas?”. No fim do dia, dirijo-me para Carnaxide ou Barcarena, onde há sempre espaço para uma conversa irónica sobre a suposta agressividade da polícia e a inquestionável segurança desse Portugal idílico.

Contudo, a minha tranquilidade é periodicamente abalada, não pelas manchetes que descrevem a realidade do país, mas pelos encontros casuais que me trazem um vislumbre de uma outra faceta deste paraíso. Nas raras vezes em que vou ao supermercado sem a ajuda da empregada que tira férias, cruzo-me com gente de quem costumo ouvir falar em tom depreciativo. São pessoas que vivem num Portugal bem diferente daquele que se desenha no meu bairro, e que me fazem lembrar, sem necessidade de palavras, que a segurança é algo que se vive de diferentes formas, dependendo do lugar e da sorte.

Afinal, não são apenas as manchetes a ecoar essa dualidade. Em relatórios sobre segurança, Portugal é frequentemente destacado como um dos países mais pacíficos do mundo, mas números como os dos 169 suicídios de polícias desde o ano 2000 parecem não caber nesse retrato. Em média, 8 suicídios de agentes por ano levantam questões sobre a estabilidade das próprias forças de segurança. Será que essa paz que tanto apregoamos não é apenas uma fachada para quem vive na parte mais afortunada do país?

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A rotina confortável que descrevo, em que me desloco entre cafés, escritórios e escolas internacionais, oferece uma perceção de segurança quase absoluta, mas é apenas uma versão editada da realidade. Portugal, segundo o Global Peace Index, ocupa uma posição de destaque entre os países mais seguros do mundo – consistentemente nas primeiras quinze posições. No entanto, para muitos, o conceito de segurança vai além da ausência de violência grave. É um sentimento mais profundo, que não pode ser expresso unicamente em estatísticas. Só quem nunca se confrontou com a falta de cruzamento de dados na gestão pública pode acreditar verdadeiramente que os dados de todas as polícias e forças de segurança são reunidos de forma eficaz.

De fato, para um grupo significativo da população, as ruas de Portugal são seguras, mas há realidades que escapam a essa visão otimista. Em 2022, o país registou um aumento de 13% nas ocorrências de crimes violentos, como assaltos e agressões, de acordo com o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI). Esses dados confrontam a imagem de um paraíso seguro e levantam dúvidas sobre o que realmente significa segurança.

Na região de Lisboa, a situação é especialmente contraditória. Por um lado, é um dos lugares mais procurados por estrangeiros e expatriados, mas, por outro, enfrenta desafios típicos de uma grande metrópole europeia. Não é raro que bairros periféricos, figurem nas notícias associadas a assaltos e conflitos, e para os moradores dessas áreas, a realidade diária contrasta violentamente com o cenário idealizado de uma Lisboa segura e serena.

A insegurança, para muitos, não vem de medos abstratos, mas de vivências concretas. Em escolas públicas, casos de violência entre estudantes são relatados com crescente frequência. E os incidentes em instituições de ensino são emblemáticos de uma juventude que muitas vezes se vê desamparada, especialmente em bairros menos favorecidos. A violência escolar não é um problema isolado, mas reflete uma tensão social que não se resolve com campanhas de sensibilização, mas com uma verdadeira transformação das oportunidades.

Enquanto eu, no meu bairro bem protegido, posso me dar ao luxo de ignorar esses episódios, há quem os viva de perto. Os dados oficiais mostram que Portugal continua a ser um dos países menos violentos da Europa, mas, como sempre, os números escondem uma série de nuances. Num país onde a criminalidade violenta representa uma pequena fração do total de ocorrências, ainda assim, para aqueles que vivem em áreas vulneráveis, essa é uma ameaça constante. Pouco importa o país mais seguro do mundo a quem, ainda que estatisticamente poucos, sente o calor da bala ou o rubor da faca.

O paradoxo da segurança em Portugal reflete-se também na relação entre a polícia e a população. Em áreas nobres, a presença policial é vista com certo distanciamento, quase como um detalhe pitoresco que garante uma certa ordem. Já nas zonas mais marginalizadas, a polícia é encarada com desconfiança e, em alguns casos, com hostilidade. Episódios de confrontos entre residentes e agentes não são inéditos, e o sentimento de segurança para quem vive nesses locais é, no mínimo, frágil.

Os suicídios entre polícias, mencionados anteriormente, são um dado alarmante e sintomático. Esse fenómeno aponta para um conjunto de problemas internos que vão desde a precariedade das condições de trabalho até à falta de apoio psicológico. Entre 2000 e 2023, ocorreram cerca de 20 suicídios por ano nas forças de segurança. Uma estatística que revela não só as pressões enfrentadas por esses profissionais, mas também uma sociedade onde os defensores da segurança pública nem sempre encontram a paz de que tanto necessitam.

Portanto, a minha visão de Portugal como um oásis seguro, onde as preocupações são tão triviais quanto o açúcar no café ou a escola dos filhos, esbarra com uma realidade que não posso ignorar. Sim, Portugal é seguro – para alguns. Mas para outros, a tranquilidade é um privilégio tão distante quanto os bairros nobres são dos subúrbios onde residem. E para que a segurança seja de fato uma realidade coletiva, precisamos começar por reconhecer que esse “Portugal seguro” é uma verdade que se vive de maneira desigual.

A percepção de segurança pode muito bem ser apenas a cortina do meu duplex que encobre o que está realmente acontecendo do lado de fora. E se me recusar a desviar a cortina, nem os gritos de facadas nem os tiros das 9mm serão ouvidos através das minhas janelas de vidro triplo.

Termino o meu dia algures na Rua de Palma onde ninguém consegue compreender porque Portugal não está de facto na primeira posição de segurança a nível mundial. Adormeço a meio dos 169 polícias que se suicidaram desde 2000, a pensar se terão sido relações amorosas mal compreendidas ou porque desceram 20% as ações da multinacional que tinham em carteira, talvez da empresa a quem compram os coletes e os gás-pimenta, do seu próprio bolso.





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