Para dezenas de valencianos o carro tornou-se numa armadilha mortal durante as inundações da última semana. Ou porque procuraram abrigo e segurança neles, ou porque pensaram em usá-los para fugir mais rapidamente ou ainda porque apenas queriam salvar o seu automóvel. Resultado: acabaram por ficar encurralados nas próprias garagens e dificultaram o acesso.
As buscas das equipas de emergências espanholas, com recurso a mergulhadores, ainda decorrem em parques de estacionamento subterrâneos e garagens privadas, em Valência, e as autoridades não descartam que continuem a ser localizados cadáveres à medida que os locais até agora inacessíveis sejam inspecionados.
“Dentro do carro há uma falsa sensação de segurança, porque pensamos que é pesado. Mas assim que a água passa por cima do eixo da roda, ele já está instável e, embora tenhamos menos medo da água do que do fogo, por exemplo, a água em movimento é muito perigosa porque tem muita força e exerce muita pressão sobre o carro”, explica Annika Coll, chefe da Ericam, a equipa de Emergência e Resposta Imediata da Comunidade de Madrid ao jornal El Pais.
“Os carros, nesses casos, são uma armadilha e dificultaram o acesso. É por isso que é tão importante ter uma cultura preventiva, que os cidadãos saibam o que não devem fazer e o que podem fazer até que as equipes de resgate cheguem”, afirmou Virginia Barcones, diretora geral de Proteção Civil e Emergências, ao mesmo jornal.
Também Annika Coll não tem dúvidas que se mais pessoas tivessem evitado o acesso aos carros no pior dia da tempestade em Valência, na última terça-feira, 29 de outubro, as vítimas mortais do desastre natural, a superar as 210, podiam ter sido menos. Para a bombeira, com mais de 25 de anos de experiência em cenários internacionais de terramotos e inundações, a “educação prévia” sobre o que fazer ou não em caso de emergência é um fator determinante para a contabilidade final de vítimas.
Os avisos que apelavam a que fosse evitado “qualquer tipo de deslocação na província de Valência” foram transmitidos por SMS aos habitantes pouco depois das 20h00 da noite de terça-feira passada. Segundo Maribel Albalat, Presidente da Câmara Municipal de Paiporta — localidade onde 60 pessoas morreram — “os primeiros avisos chegaram tarde, quando a água estava a dois metros de distância e o mal já estava feito”. Muitos valencianos acharam que tinham tempo e correram para os carros em vez de procurar refúgio em sítios altos onde a água não chegasse.
Num dos epicentros da tragédia em Valência: “Não estava a chover sequer, achávamos que tínhamos tempo”
O primeiro-ministro, Pedro Sánchez, revelou este sábado que “mais de 2.000 veículos” foram removidos das estradas e que a inspeção de garagens, estradas, casas e leitos fluviais resultou na remoção de 211 corpos.
Com a busca das dezenas de desaparecidos no topo das prioridades das autoridades em Valência, decorrem operações em garagens de grandes centros comerciais inundadas. Mergulhadores da Guarda Civil e da Unidade Militar de Emergências (UME) relataram ao El Espanol que encontraram “cadáveres ao toque” em garagens privadas e públicas que continuam cheias de águas residuais na cidade de Sedaví, a apenas 12 km de Valência.
Um enorme dispositivo está montado no Centro Comercial Bonaire, em Aldaia, onde, após uma primeira inspeção do parque de estacionamento subterrâneo que ficou submerso, as equipas de resgate não encontraram, até ao momento, corpos. A informação foi avançada esta segunda-feira, mas segundo a Polícia Nacional espanhola, citada pela ABC, ainda não foi descartado que sejam encontradas vítimas mortais no local. Foram inspecionados 50 carros depois de a água que se acumulou na infraestrutura ter sido removida. A instalação tem um total de 1.800 lugares num total de 60.000 metros quadrados.
Se no primeiro momento os carros são uma “ratoeira” no segundo momento são um bloqueio: impedem que o resgate ou socorro cheguem, pois amontoam-se à entrada de ruas, criando verdadeiras barreiras.
“As nossas equipas estavam pré-alertas em toda a bacia do Mediterrâneo para chuvas torrenciais e, assim que começámos a ver a gravidade, por volta das seis horas da tarde de terça-feira, tentámos ter mais equipas na rua, mas o encerramento de estradas e as inundações tornaram a mobilidade extremamente difícil”, conta ao El País Íñigo Vila, diretor de emergências da Cruz Vermelha.
“Nessa altura, pouco pode ser feito. E embora haja a possibilidade de encontrar pessoas vivas dentro dos veículos, não é possível entrar e limpar as estradas com maquinaria pesada. A chegada da ajuda teve uma série de condições muito complexas. Foi uma tempestade perfeita”, lamenta Íñigo Vila que esteve em cenários de catástrofe, como as grandes inundações de Badajoz, o 11-M, o furacão Katrina, o terramoto no Haiti e o tsunami na Indonésia.