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Um mundo sem americanos – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Nov 7, 2024

Os americanos têm as costas largas, ou não tivessem inventado o XXL. Não há certamente povo mais idolatrado nem vilipendiado. Até chateia. Só os americanos se acham tão excepcionais que basta aplicar o adjectivo “americano” para, imediatamente, fazer um título, afirmar uma essência. “American Beauty”, “American Fiction”, “American Gigolo”, “American Gangster”, “American Sniper” – às vezes, simplemente, “The American”. Experimentem com outras nacionalidades: “Beleza Eslovaca”, “Gigolo Peruano”, “Psicopata Neerlandês”. Não dá. Não pega. Há muito que a americanidade nem é bem uma nacionalidade, mas uma marca. A do “sonho americano”. Do “american way of life”. Mas o mais estranho é que não há, certamente, nation branding mais universal. Ou porque a América foi feita por gente de toda a parte ou porque já chegou a toda a parte e agora encontra o seu limite.

Todos somos americanos. Numa lista de segundas nacionalidades, de país acerca do qual mais sabemos a seguir ao nosso (e, às vezes, talvez mais do que isso), a América ganharia sempre. Fácil. Os europeus acompanham com mais interesse as eleições americanas do que as europeias – e isso talvez baste para explicar boa parte dos tempos difíceis que nos aguardam. Nem nos damos ao trabalho de dizer “os Estados Unidos da”. Desbaratamos, despudoradamente, o nome de um continente inteiro num só país. A “América” é uma ideia, de que todos fazemos parte. Ou fazíamos, até ontem.

Nos próximos tempos, vamos continuar a oscilar entre a perplexidade e a busca por explicações para os motivos pelos quais os norte-americanos decidiram voltar a dar, e desta vez, de forma esmagadora, o poder a Donald Trump. Mas, por mais voltas que se dêem ou mais imobilizados que possamos ficar na recusa em aceitar uma resposta, é difícil escapar a uma ideia: os americanos votaram Trump porque estão fartos de imigrantes. É ouvir a reacção da turba de cada vez que fala em recuperar o controlo das fronteiras ou em deportações em massa. E não vale a pena dizer que são só os maluquinhos que vão aos comícios; é a larga maioria do país que votou nisto apesar dos maluquinhos e apesar dos comícios.

Como pode a América estar farta de imigrantes se, como nenhum outro país, foi feita por eles? E não foi há 200 anos; é agora: Elon Musk é um imigrante. Melania Trump é imigrante. Donald Trump é filho de uma imigrante. Porque, provavelmente, o problema não é americano. Porque, mais uma vez, ser “americano” não é mais do que ser igual a outro humano qualquer. Porque, como se vai tristemente vendo por toda a parte, um pouco por todo o mundo toda a gente acha que o problema são os outros.

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Assim que passamos a porta, fechamo-la atrás de nós. Latinos, asiáticos, árabes, africanos – a partir do momento em que ganhamos uma nacionalidade, tornamo-nos americanos. Vamos vestir-nos à americana, falar à americano, olhar de cima para baixo à americano. Somos empáticos com o imigrante, o estranho, o alienígena, o outro, quando não nos ameaça. Quando até nos faz sentir mais humanos, melhores, mais ecuménicos, mais compreensivos, mais civilizados. Quando lhe podemos estender a mão. Quando temos de sobra para dividir. Mas, quando não temos ou receamos não ter, então sobra a desconfiança: que quer este forasteiro à nossa porta? A nossa vida? A nossa casa? O nosso país?

Como se voltou a eleger um homem que ganhou da primeira vez com interferência russa? Que, da segunda, tentou manipular os resultados da eleição? Que incitou a revolta popular para se tentar segurar no poder à força? Que todos os antigos colaboradores abandonaram e denunciaram como incapaz para a função? Porque, provavelmente, ninguém está a pensar muito nisso. Os estudos mostram que os eleitores estavam preocupados essencialmente com duas questões: economia e imigração. A economia continua a crescer e a criar empregos com um dinamismo com que, na Europa, apenas podemos sonhar; mas sofreu com a inflação que foi criada pela própria América, quando desatou a passar cheques às pessoas para combater uma crise que, afinal, nunca se instalou estruturalmente durante a Covid. O que mudou, realmente, nos últimos anos, foi a imigração, que atingiu números recorde.

Em teoria, votamos em líderes políticos que nos representam. Ainda a semana passada aqui escrevia que é difícil compreender como se sentir representado por alguém como Trump, que, tão visivelmente, só pensa nele mesmo. Mas talvez a questão seja mesmo essa: talvez tantas pessoas tenham votado Trump precisamente por ser um egoísta. Um egoísta como elas. Um egoísta como nós. Que vai fechar a porta aos outros. Não importa se é competente, nem mentiroso. Lembram-se dos ilegais que andavam a comer cães e gatos em Springfield? Ridículo, não era?

Porque, por toda a parte, se perdeu a vergonha de fazer a apologia do individualismo. Porque, até há bem pouco tempo, as histórias falavam de heróis pobres ou remediados que, contra todas as apostas, triunfavam na vida, e agora os protagonistas são milionários, os videoclips e perfis de redes sociais delírios de bling-bling e ostentação, a grande religião contemporânea um pastiche de receitas para o sucesso que dita que se tenha sempre mais, maior, mais caro e mais “exclusivo”. Trump ganhou porque, num mundo à beira do esgotamento dos recursos naturais, anuncia que vai explorá-los ainda mais. Porque milhões de pessoas acham que, melhor, melhor, é pensar nelas próprias, que é o que todas as outras fazem.

Se isto vai correr bem? Claro que não. Se uma economia fechar-se sobre ela mesma fosse boa política económica, a Coreia do Norte era uma potência. Nunca teria existido América. Enquanto isso, cá fora, em todos os países a que os Estados Unidos voltarem as costas, só crescerão, ainda mais, a influência russa e chinesa. No fim, alguém perguntará o que correu mal. Pode ser que o tipo a quem antes apontaram o dedo, agora lhes estenda a mão. Mas eles não vão gostar.

O maior país do mundo rebentou de tão cheio dele mesmo. E nós não fazemos ideia do que vamos fazer sozinhos.





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