Jejum nacional e oração para esta quarta-feira, pediu o político-pastor evangélico-engenheiro. Porque quinta-feira, 7 de novembro, não é um dia qualquer, é “o dia D”. É o último de “Sete dias da libertação de Moçambique do colono preto”, como lhe chama VM7 , o diminutivo que a imprensa e os apoiantes cunharam para Venâncio Mondelane. Será o culminar de uma semana de greve geral e manifestações, o momento da grande “Marcha sobre Maputo”, da “Manifestação contra o assassinato do Povo Moçambicano”, convocada para as 7h00 (mais um sete), pelo candidato independente às eleições gerais de 9 de outubro, que a Comissão Nacional de Eleições (CNE) diz que perdeu e as ruas gritam que venceu.
Mais de “um milhão de pessoas” já terão chegado à capital, vindos de outras zonas do país, diz Venâncio Mondlane em entrevista ao Observador a partir de um local desconhecido: “Tenho a cabeça a prémio, acho que oferecem 16 milhões” disse num dos seus vídeos transmitidos nas redes sociais. Umas horas depois da conversa com o Observador, surge em mais “uma live”, onde dá instruções e motiva os seus apoiantes, em direto, nas redes sociais. Nos 48 minutos da tarde desta quinta-feira VM7 dá uma notícia: tem as contas bancárias bloqueadas. “Mas não vão parar a minha luta, porque é uma luta por convicções”. E pede às mulheres que levem “rosas e flores para pôr nos canos das armas da polícia e dos militares”.
Será um dia “histórico”, prevê, acreditando que depois deste movimento, “Moçambique não será mais o mesmo”, é “inevitável uma mudança”. Quinta-feira não será, porém, o culminar da contestação, apenas o fecho da terceira parte de uma estratégia em quatro atos que tem sacudido Maputo (e outras zonas do país) como nunca em muitas décadas.
O que se passa em Moçambique?
Há várias semanas que as imagens e as notícias internacionais mostram uma violenta repressão policial, com gás lacrimogéneo, tiros com balas de borracha, algumas verdadeiras, contra os manifestantes que queimam pneus, incendeiam equipamentos públicos, alguns privados, cortam avenidas, lançam pedras e outros objetos às forças de segurança. Há pelo menos 16 mortes, duas figuras chave da equipa de Mondlane assassinadas, centenas de feridos e milhares de pessoas foram detidas. Houve vias cortadas, como a maior autoestrada que liga o porto de Maputo à África do Sul. Aliás, a fronteira em Lebombo está fechada há cerca de dois dias.
Moçambique em pé de Guerra Civil , a África ( povo ) novamente vai tentar arrancar o Ditador que a 55 anos se mantém no poder. perdeu a eleição e não enterga o poder, EUA já entrou em ação. pic.twitter.com/1kb8NSxD8w
— SIDNEY VARELA01 (@SIDNEYVARELA5) November 6, 2024
Dois moradores de Maputo descrevem ao Observador um “ambiente explosivo”, com um forte dispositivo militar e policial nas ruas, helicópteros a lançarem gás lacrimogéneo não só para manifestantes mas para casas e tanques militares que ameaçam os que protestam.
“Não estou com medo do povo, estou com medo da polícia e do governo.” Portugueses em Moçambique sentem-se “sozinhos” no meio de protestos
Alguns dizem que saem pouco de casa com medo “não do povo, mas da polícia”, mas que a “cidade de cimento [por oposição aos bairros de terra batida] está calma”. Todos se queixam de um apagão nas telecomunicações para “impedir a circulação de informação”, e dizem que começa a haver falta de mantimentos porque o comércio está fechado, por precaução ou greve. Por outro lado, sem transportes públicos, as instituições não funcionam porque os funcionários vivem nas periferias, e já não há só soldados moçambicanos nas ruas: “Há tropas ruandesas”.
Esta quarta-feira, Pretória apelou “à calma e contenção”, Lisboa aconselhou os portugueses que estão em Moçambique cuidados redobrados, e o ex-Presidente moçambicano reconheceu que “o país vive um momento grave” e que “ninguém deve impor o seu candidato”, pois fica “perigosamente perto do golpe de Estado”. Na segunda-feira, segundo a Rádio Moçambique, Adriano Maleiane, ministro das Finanças e primeiro-ministro, disse que a economia pode colapsar se as manifestações não acabarem. E nesse mesmo dia, a ministra dos Negócios Estrangeiros, reuniu-se com o corpo diplomático e pediu ajuda para restaurar a estabilidade.
É neste cenário, na véspera da grande manifestação, que o Observador entrevistou Venâncio Mondelane pelo telefone.
Convocou uma grande manifestação para amanhã e no início do mês disse que estaria presente. “Se no dia 7 de novembro me balearem, me envenenarem , estou disponível para levar esta missão avante”. Mantém esta determinação?Vai abandonar o seu refúgio, fora do país, para participar neste protesto?
Saí porque fui informado de que havia ordens superiores para me assassinar. Mas quero muito estar lá. No entanto, confesso que estou num grande conflito interno. Estamos perante um grande movimento nacional, algo sem precedentes. E eu quero estar lá. Mas estou sob uma grande pressão para não ir.
O partido que o apoia, o Podemos, pediu-lhe que não fosse, há vozes a dizerem que precisam de si vivo e não como mártir. O que vai fazer?
Estou com a passagem marcada para viajar hoje [quarta-feira] e tudo, mas tenho 1.300 mensagens a pedirem para não pôr o pé em Moçambique, insistem em que não esteja lá, estou em grande conflito. O governo deu ordens para me caçar, por isso tive de sair do país. Mas deve estar frustrado nesta matéria, pois o tribunal rejeitou o mandado de captura porque ainda estou coberto pela imunidade de candidato presidencial. Então dizem-me que recorreu a atiradores. Podemos e CAD [Coligação Aliança Democrátiva] desencorajam a minha presença. Tenho 450 colaboradores nas províncias e 99% dizem que não posso pisar solo moçambicano. Mas gostaria muito de ir.
Não tem medo de ser preso? Há vários processos crime contra si.
Não vou parar a minha luta, é uma luta por convicções. Estou a defender valores que são intemporais, que estão acima desta vida que é como um sopro, passageira. E a marcha de amanhã [quinta-feira] vai realizar-se sem sombra de dúvidas, entrou cerca de um milhão de pessoas em Maputo. Não têm como impedir esta grande manifestação contra o assassinato do povo moçambicano.
Tem estado a pedir, e pelos vistos vai ter, um banho de multidão, não receia um banho de sangue?
Estamos a falar do destino de um país que quer sair de um regime estabelecido durante meio século através do contrabando, da autocracia, da corrupção, de políticas de regimes violentos, que não governa a pensar no povo mas no interesse de quem está no poder. Não aguentamos mais. Riscos temos de correr, com fé, com a convicção de que estamos a lutar por valores nobres para não ficar mais cinco anos no mesmo círculo vicioso.
O governo já disse que terá as forças de segurança em prontidão
Estão a preparar-se para a guerra, mas as pessoas que vão marchar, que se vão manifestar estão desarmadas, é uma marcha pacífica. Governo mandou vir comandos angolanos, alojados no hotel Glória, e deslocou as tropas ruandesas de Cabo Delgado, violando a nossa soberania.
O governo desmentiu a presença de tropas do Ruanda
Podem desmentir o que quiserem, mas é verdade. Há imagens. O medo da guerra sempre foi uma arma de arremesso usada durante anos de fraude, criando uma atmosfera de trauma, de medo, de abater psicologicamente as pessoas. Fazem tudo, da fraude à violência, para o governo se manter intacto no poder. A Frelimo só tem a força, não tem apoio político nem social, apenas o poder das balas, de matar.
Nas suas “lives” tem falado diretamente para as forças militares e policiais pedindo-lhes que não disparem contra os manifestantes. Acredita que o vão ouvir?
Tenho a forte convicção de que os apelos que estamos a fazer às forças de defesa e de segurança para se juntarem a este movimento, para não atacarem os manifestantes, vai resultar. Não somos um movimento de vândalos e anarquistas, como o governo tem dito. Temos um projeto concreto para a valorização dos moçambicanos, dos militares aos polícias, dos médicos aos professores. Aconselho as forças de segurança a unirem-se ao povo. tal como sucedeu no Malawi.
É verdade que houve uma marcha em que os soldados caminharam ao lado dos manifestantes? Isso signifca que o exército está a mudar de posição?
Há um vídeo que ficou viral em que as forças de segurança estão a marchar com o povo, na avenida Joaquim Chissano, uma força policial de forma passiva. Mas passa um carro anti-motim e começa a disparar para a população… Isto mostra que, apesar de tudo, há uma franja que se está a colocar do lado certo da história. Ainda há quem resista a ordens de um poder autocrático, tal como sucedeu no 25 de Abril em Portugal.
No 25 de Abril são os militares que começam a revolução…
O que digo é que os ingredientes para uma revolução estão criados sem ser preciso pegar em armas. Vamos marchar pelas principais avenidas de Maputo, e manifestar-nos onde se concentra o poder político, económico e legislativo.
Acredita que a força da rua pode levar a alterações?
Só a presença destas multidões pode trazer mudanças. E sinal de que esta pressão das ruas está a resultar é o despacho do Conselho Constitucional (CC) a dar um prazo à Comissão Nacional de Eleições para justificar a disparidade do número de votantes entre as eleições presidenciais e as legislativas e as para as assembleias e governadores provinciais [as eleições de 9 de outubro foram gerais]. CC quer saber porque razão os dados da CNE trazem incongruências e inconsistências. Facto para o qual nós já chamávamos a atenção no nosso recurso para o CC. Esta posição, creio, resulta das manifestações no país inteiro e com a de amanhã, o impacto vai ainda ser maior.
Insisto: e as pessoas que podem morrer se as forças de segurança dispararem?Este grande movimento, este banho de multidão não está a destruir bens privados de ninguém, as forças de segurança é que se estão a comportar como uns assassinos. Não posso responder pelas atitudes dos militares e polícias quando as pessoas estão a exercer o seu direito constitucional a manifestar-se. Se dispararem, vão responder pelos seus crimes.
Mas já lhes prometeu uma amnistia, certo?
Se pararem de assassinar as pessoas. Moçambique, em situação de crise, sempre criou despachos de amnistia entre a Frelimo e a Renamo que andavam armados. Eu proponho uma amnistia não apenas para crimes de guerra mas também económicos e financeiros. É a mensagem mais integradora e ousada de tudo o que se propôs no país. Agora, esperemos que parem de assassinar pessoas, se continuarem, irão pagar por isso. Grupos da sociedade civil já se estão a movimentar e apresentaram queixas no Tribunal Penal Internacional (TPI).
Está a usar o poder na rua para pressionar o CC uma outra frente da sua luta, a legal? Este órgão constitucional ainda não validou os resultados apresentados pela CNE, que dão a vitória a Daniel Chapo, o candidato da Frelimo, com 70,76% dos votos e o colocam a si em segundo lugar, com 20,32%.
Esta é a última oportunidade histórica que o CC tem de se credibilizar, de tomar uma decisão diferente da das provas apresentadas pela CNE. que já está a ter dificuldades enormes em apresentar o que o CC pediu. Estão a inventar que pessoas de má fé foram roubar atas e editais, quando foram eles que falsificaram, adulteraram e manipularam os resultados. O CC tem consciência de que a CNE falsificou, não creio que mantenha aquelas resultados, é uma indicação de que não confia pelo pedido que já fez.
E se não os mantiver?
O que se vai fazer é futurologia.
Como assim, não vai acatar a decisão do CC se for contrária ao que defende?Uns dizem para nos conformamos com esta decisão já que é tomada por um órgão e é legal. Pode ser legal mas não é justa, pode ser legal mas não corresponde à verdade. Temos provas disso [Mondlane e o partido Podemos criaram um sistema paralelo de contagem de votos, muniram-se de atas e editais que dizem provar que venceram as eleições e a Frelimo foi derrotada] e temos de lutar contra a injustiça e pela verdade. Antes do 25 de Abril, em Portugal, tudo era legal e o povo decidiu acabar com essa legalidade, abrir outro quadro jurídico, por exemplo. Moçambique precisa de uma página nova, novas estruturas para o sistema de justiça, por exemplo.
Está a dizer-me que a luta não é apenas pelos resultados eleitorais?
Claro. Este movimento é mais amplo, o Venâncio é só um vaso, um altifalante desta revolta, deste grito por mudança. Há uma tendência nas mensagens que vamos ouvindo que não são “Venâncio ganhou” ou “Podemos ganhou”, mas que se relacionam com o custo de vida, a liberdade de expressão e económica, os direitos fundamentais, questões que vão muito para além dos votos. Precisamos de reformar o nosso Estado.
Esta grande marcha é o final da terceira parte de um plano de quatro. Qual é a quarta?
A quarta e última nem os meus colaboradores mais próximos conhecem.
Frelimo, e Daniel Chapo, já se disseram disponíveis para dialogar. Qual é a sua resposta? Os bispos apelaram a um governo de unidade nacional. Está disponível para ponderar essa possibilidade? Aliás o histórico da Frelimo e ex-Presidente Joaquim Chissano, que, na verdade, também o tem criticado, parece ter aberto a porta a essa hipótese.
Joaquim Chissano é um dos principais responsáveis pelo abismo em que o país caiu, está ser moral e intelectualmente desonesto. O histórico da Frelimo é o de nunca cumprir nenhum acordo. Por exemplo, o de Lusaca: não cumpriu eleições multipartidárias, liberdade de expressão, liberdade religiosa, económica e de comunicação. Rasgou aquele acordo. E depois todos os outros. Chissano até se gabou disso em público. A Frelimo nem cumpriu o acordo com o atual presidente da Renamo…Há um histórico de falta de honrar esses acordos.
Ou seja, não confia?
Daniel Chapo não esteve na guerra, quem sabe podemos falar melhor. Para o diálogo estamos disponíveis, claro, mas com questões concretas, essenciais, algumas que o povo moçambicano tem reivindicado há mais de 50 anos, para tal acordo.
Como por exemplo?
A reposição da verdade eleitoral, desde logo, mas também outras questões como acabar com a partidarização completa do aparelho de Estado, por exemplo. Estamos a lidar com um partido que não honra os seus acordos, mas não fechamos portas, precisamos é de garantias robustas que assegurem que o que for acordado vai ser cumprido.
Que garantias?
Garantias que nos podem ser dados com o reforço da comunidade internacional e da sociedade civil, face à história de não cumprimento desses acordos, por exemplo.
Que apoio internacional tem tido para além das manifestações de repúdio pelo assassinato do seu advogado Elvino Dias e de Paulo Guambe do Podemos? E de Portugal?
Apoio internacional, de Portugal inclusive, tem sido hesitante e titubeante, mais a nível privado do que público. Parece que em Portugl se vai discutir agora o assunto por proposta do Bloco de Esquerda. Houve mortes e assassinatos e não tivemos o apoio expressivo e contundente que gostaríamos de ter tido em pronunciamentos públicos. Mas o apoio da diáspora moçambicana tem sido fantástico, com manifestações em Itália, Portugal, Estados Unidos, Suécia, África do Sul, só para citar algumas. E há comunidades, como a angolana que se estão a juntar à moçambicana.
Disse num dos seus vídeos que “estava aqui para o que der e vier”. Até quando?Estou preparado para lutar até às últimas consequências. Este é um momento histórico, não é para desistir. É um movimento que pela primeira vez integra grupos muito transversais da sociedade até artistas ligados ao stablishment, empresários, 99% dos estudantes universitários, Este grupo de alunos iniciou o movimento do “panelanço”, o de bater tampas de tachos e panelas nas janelas da Avenida Július Nyrere, uma avenida onde vive a elite moçambicana, com embaixadas, casas de politicos, etc. É um local simbólico do poder e que tem aderido a este protesto com muita intensidade. Este movimento não é de vândalos e marginais. tem dos mais pobres ao mais ricos, dos com menos instrução aos mais instruidos, é transversal à sociedade.
É um momento decisivo?
Sim, porque este não vai ser um movimento fugaz ou passageiro. Depois disto Moçambique não mais será o mesmo, haverá mudanças estruturais muito grandes, profundas. Não porque o Venâncio está a mover pessoas, ou o Podemos, mas porque Moçambique vive um momento crítico em que os indicadores económicos e sociais são terríveis. Por isso a mudança é inevitável, é inevitável haver mudança de regime, por fatores que ultrapassam o Venâncio, estão acima do Venâncio. O assunto é mais nacional e histórico. Não há alternativa. Este é o momento certo para a revolução em Moçambique.