Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, o ser, a confiança e os métodos para lidar com as vitórias eleitorais de Donald Trump. Há oito anos, perante a apatia ou o entusiasmo das altas instâncias do Partido Democrata, milhares de derrotados saíram às ruas de diversas cidades americanas (e europeias), a fim de exibir descontentamento, berrar slogans, bloquear estradas e arrasar propriedade pública e privada. Em suma, o que os amotinados pretendiam era apenas “despertar consciências” e rejeitar os resultados das “presidenciais”, pelo que nada do que aconteceu pode ser comparado ao ataque à democracia perpetrado pelas dúzias de lunáticos que invadiram o Capitólio em 2021. A destruição civilizada de incontáveis automóveis e lojas é uma coisa. Desonrar o gabinete de Nancy Pelosi é outra.
Para o que aqui importa, importa notar que em 2024 não se passou nada de semelhante. Trump voltou a ganhar e nenhuma das reacções envolveu motins. A primeira reacção da Resistência consistiu em gravar vídeos para o TikTok e o Instagram. Há vídeos com criaturas a chorar, vídeos com criaturas a gritar, vídeos com criaturas a oferecer um ombro amigo, vídeos com criaturas a rapar o cabelo, vídeos com criaturas a garantir abstinência sexual, vídeos com criaturas a jurar abater a tiro os homens brancos que lhes aparecerem no caminho, vídeos com criaturas a pedir que o Mal caia em cima de todos os eleitores de Trump, etc. Isto lembra o início das cinco fases do luto, ou o Modelo de Kübler-Ross, filtrado pelos Monty Python. Ou o documentário “Titicut Follies” sem filtros.
E continua. A segunda reacção, inspirada pelos que em 2016 fingiam sair da América, implica fingir que se sai do Twitter, agora X. Funciona assim: inchado de solenidade, Fulano escreve, no próprio X, que vai embora do X porque Elon Musk, o dono da “rede”, é um louco que coordena assombrosos projectos tecnológicos, um falhado capaz de fundar três ou quatro extraordinárias empresas, um fascista que defende a liberdade de expressão e, pior, um descaradíssimo apoiante e “ministro” de Trump. Na maioria dos casos, a saída de Fulano do X é tão impressionante quanto a sua entrada: ninguém dá por ela. Em casos ocasionais, do “Guardian” inglês ao “La Vanguardia” catalão, dois monumentos cuja credibilidade leva a recordar com saudade o falecido “Jornal do Incrível”, o abandono do X (“abandono”, vírgula: eles limitam-se a dizer que não voltam a rabiscar “posts”, embora mantenham a página para guardar subscritores e publicidade) possui certo impacto, sobretudo entre o público que gosta de combater a “desinformação” com artigos a enaltecer a transsexualidade infantil e o Hezbollah. Musk, aliás, respondeu ao diário londrino: “Não é preciso anunciarem a vossa partida. O X não é um aeroporto.” Por cá, a dra. Ana Gomes também pensa que o X é um aeroporto. A sua falta será sentida, mas não imagino por quem.
A terceira reacção é a minha preferida. Sob o patrocínio de direcções e docentes, uma resma de universidades dos EUA, incluindo Harvard, Columbia, Penn e UMass, resolveram providenciar meios para os alunos angustiados digerirem a próxima presidência de Trump. Os meninos e as meninas contam com dispensa às aulas, cães de terapia e “espaços de pesar” – pesar de mágoa, não batatas. E a Escola de Políticas Públicas McCourt, que fica em Georgetown e em teoria é um estabelecimento de ensino superior, passou a organizar tardes com legos e livros para colorir. Inúmeros jornais, revistas e “sites”, a um passo de fugir do X, desataram a divulgar artigos com “dicas” para lidar com a ansiedade suscitada por Trump (“Trump blues”, diz, sem surpresas, o “Guardian”). Uma das “dicas” é: “Não reprimas as emoções: processa-as” (em tribunal?). Também gosto desta: “Não perdoes aqueles que não votaram” (era cortá-los aos pedacinhos). E desta: “Canaliza a dor para o envolvimento pró-activo em causas cívicas” (não foram essas toleimas que os trouxeram aqui?). E esta excede os píncaros do humor: “Limita as tuas fontes de notícias a instituições responsáveis, por exemplo a BBC ou o ‘New York Times’” (é pena que a Sic Notícias não emita em estrangeiro). São centenas e centenas de recomendações em dezenas e dezenas de publicações, a levantar a suspeita de que não há gente tão atormentada com o regresso de Trump quanto os “jornalistas”, leia-se os abundantes sujeitos e sujeitas que usam o título sem desempenharem a função.
No que toca aos desalentados em geral, o quadro é negro (ou complicado, que não quero convocar acusações de racismo). Claro que, de tanto se isolar em fantasias “identitárias”, a esquerda, em ambos os lados do Atlântico, esqueceu-se das preocupações das pessoas comuns e razoavelmente sãs que dantes simulava representar. Porém, o tombo é mais fundo: a esquerda extremou-se a ponto de literalmente se esquecer de como são as pessoas comuns. E razoavelmente sãs. Afastada dos seus princípios, enclausurada em delírios académicos, separada do mundo do trabalho e radicalmente mergulhada nos cultos da vitimização e da censura, a esquerda tornou-se uma caricatura de si mesma, ou da caricatura que sempre fora. Não é à toa que muitos espécimes que soluçam no TikTok parecem de facto “cartoons”.
Boa parte da esquerda actual é um desfile de esquisitices e de esquisitóides, adultos imberbes e frágeis, histéricos e sensíveis, sem sequer o vigor antidemocrático que avisava a malta para guinchar insanidades e vandalizar avenidas. Uma mera manifestação anti-semita ou um circo “climático” esgota-lhes a energia. Uma vitória de Trump põe-nos em contacto com linhas de prevenção do suicídio. Ou, nas situações terminais, a colorir bonecos da Hello Kitty e seguir fancaria de “auto-ajuda”. A estratégia “woke”, substituta da luta de classes e pensada para a esquerda reinar sobre uma sociedade infantilizada, acabou a infantilizar a esquerda e a repugnar o resto da sociedade. O resto permanece maioritário. Quando deixar de o ser, prometo não me filmar em pranto nem brincar com legos.