Para os mais céticos, este era apenas um momento em que o KO estava garantido para o boxe profissional, “condenado” a ser um desporto secundarizado perante eventos que desvirtuam aqueles bons velhos tempos em que combates pelo título de pesos pesados reuniam no mesmo espaço milhares de pessoas apaixonadas pela modalidade e em estado de ansiedade durante semanas e semanas até esse dia do duelo. Para os mais esperançosos, era um 3×1 em versão express por juntar adeptos de boxe, fãs casuais e críticos do modelo em frente a um qualquer dispositivo para assistirem a “um dos eventos mais absurdamente divertidos que o desporto já viu”, como escrevia o Culture of Sport. Algures no meio, entroncava a virtude da “resposta”.
Bilhetes a dois milhões, em direto na Netflix e contra um adversário 31 anos mais novo: duas décadas depois, Mike Tyson volta ao ringue
O que se pode dizer sobre um combate entre um antigo campeão mundial de pesos pesados há muito longe da competição e falado por tudo menos boxe nos últimos tempos chamado Mike Tyson e um influencer que consegue ter mais de 20 milhões de seguidores no YouTube e que se dedicou à modalidade depois de várias polémicas que lhe custaram o lugar que tinha na série “Bizaardvark” da Disney chamado Jake Paul? É o espelho da mudança dos gostos, dos tempos e dos públicos, um pouco à semelhança do que aconteceu há uns anos com Floyd Mayweather e Connor McGregor. E se dúvidas ainda existissem, até o facto de conseguir ter casa cheia no AT&T Stadium, em Dallas, com transmissão em direto na Netflix conta o resto: existe uma veia latente de entretenimento que transformou a forma como se consome desporto em qualquer forma.
Mike Tyson meteu o tapa na cara do Jake Paul.
Alguém acreditando no velho? pic.twitter.com/Qa00dJBdhl— Central das Brigas (@Centradasbrigas) November 15, 2024
Para que nada faltasse, o próprio dia da pesagem condimentou o que estava demasiado temperado. Mike Tyson até entrou de forma bem mais discreta do que é habitual para as pesagens oficiais, mostrando que nos últimos meses trabalhou de uma maneira afincada para dar um ar dos bons velhos tempos com quase 60 anos em cima, mas bastou uma pisadela de Jake Paul ao antigo/atual pugilista para sair de rompante uma estalada na cara do youtuber que deixou dezenas de pessoas em rebuliço para que o combate não começasse antes do tempo. “Nem senti o golpe. Agora tornou-se um assunto pessoal, ele vai morrer”, atirou Jake Paul depois do sucedido. “Não tenho mais nada a dizer, só quero lutar. Acabaram as palavras”, retorquiu Tyson, que no mesmo ano em que o adversário nasceu teve uma das maiores polémicas da carreira ao arrancar parte da orelha de Evander Holyfield à dentada durante o combate e levou à entrada da polícia no ringue.
Just a reminder that the same year Jake Paul was born Mike Tyson was 31 years old, biting off ears, fighting Las Vegas police and producing one of the coldest fight pictures of all time ???? praying we see this Iron Mike back for one more night ????????#PaulTyson pic.twitter.com/Rl2PEJR1pc
— RedWolf???? (@RedWolfMMA) November 15, 2024
Não era preciso mais nada, houve mais qualquer coisa a empolar o que já estava empolado. Dinheiro não faltava, com 60 milhões de dólares repartidos entre ambos (com o dobro a ficar para Jake Paul). Atenção mediática também não, tendo em conta a quantidade de entrevistas que o antigo campeão mundial foi dando a vários meios norte-americanos e ingleses sempre com a tónica de frisar que não era uma “boa pessoa”. Mas o que fez ao certo com que Mike Tyson regressasse agora? Ninguém sabia ao certo mas todos gostavam.
It’s a war. pic.twitter.com/OGqoeoSKz7
— Mike Tyson (@MikeTyson) November 15, 2024
Há 20 anos, com uma bandeja estendida para poder vingar-se do irlandês Kevin McBride, o norte-americano recusou regressar admitindo que não tinha coragem para voltar a lutar e que não queria continuar a mentir mais a si e ao seu corpo. A partir daí, fez um pouco de tudo. Esteve preso, viajou, entrou em filmes e vários programas televisivos, abriu negócios que falharam e que levaram a declarar falência em 2003 apesar de ter ganho cerca de 250 milhões de dólares ao longo da carreira, encontrou outros que foram a sua “salvação” (como o Tyson Ranch, plantação de cannabis para fins medicinais na Califórnia com 16 hectares que rende mais de 400 mil euros por mês, segundo o “Cheat Sheet”), teve um combate no final de 2020 com Roy Jones Jr. onde doou todo o dinheiro para fins solidários depois do empate contra o compatriota.
Há qualquer coisa que sempre gerou uma ligação especial entre Mike Tyson e o público em geral. Quase uma empatia, uma atração. Enquanto Jake Paul admite que luta pela sua autoestima, o antigo campeão mundial encontra-se numa constante luta contra ele mesmo e todos os demónios que vêm consigo desde o passado. “Às vezes sinto que não sou nada”, comentou numa entrevista a propósito do combate com modelo diferente do normal onde estavam previstos apenas oito assaltos e com dois minutos cada. No mundo de Tyson, que por cada história que conta do passado deixa sempre tudo em pulgas para saber a próxima (e são histórias que metem Brad Pitt ou Michael Jordan ao barulho, entre outros), tudo tem potencial para mudar.
Say what you want about Mike Tyson, but the fact he’s challenging himself by getting out of his comfort zone, giving 100% into a training camp to fight again and getting into great shape at 58 years old is inspiring!???????? @MikeTyson pic.twitter.com/4ZaLsfUYFe
— Ross Edmonds (@RosssEdmonds) November 13, 2024
“Quando estava a olhar para aquela cara tatuada, lembrei-me daquilo que me disse numa tarde sufocante no verão de 1991. Sentámo-nos num ginásio malcheiroso de Las Vegas e o Tyson deu-me uma palmadinha na mão, lembrando-me de uma verdade sombria. ‘ Olha o que acontece aos pugilistas, até os melhores. O Joe Louis acabou como porteiro do Caesars Palace, estava numa cadeira de rodas no final. O Sonny Liston morreu na sua cidade, era um bêbedo sem dinheiro. Até o Ali, olha para o Ali. Adoro o Ali mas quando o apresentam nas minhas lutas desvio o olhar. Claro que o anima mas onde está agora a sua beleza, toda a sua velocidade, o seu talento? Foi-se, desapareceu…’. O que seria que o Tyson iria achar se lhe contasse que, em novembro de 2024, com 58 anos, ele iria voltar ao ringue contra um pugilista noviço que se tornou famoso a fazer coisas em algo a que chamam internet”, escrevia Donald McRae no The Guardian.
The mutual respect for each other. When Mike Tyson met Muhammad Ali ????✨
— Pubity Sport (@pubitysport) November 14, 2024
Este tipo de regresso só faria sentido com alguém como Mike Tyson. Ao mesmo tempo, este regresso não fazia sentido para Mike Tyson. “As pessoas querem entretenimento, intriga. Eu dou-lhes o que elas querem”, referiu o antigo campeão mundial em 1986, quando tinha apenas 19 anos. “Quando olho para toda a vida que um dia tive vejo que eu não tive problemas emocionais, tive um problema moral. Não tinha qualquer moral. Só houve uma coisa que soube fazer – magoar pessoas”, contou mais tarde após terminar uma carreira com 50 vitórias e apenas seis derrotas. Agora, algo iria “mudar”: a Comissão do Texas anuiu a que este fosse um combate profissional, com o resultado a surgir na folha de ambos (e com Paul a ter 10-1 de registo). E com outra curiosidade – houve mais gente a apostar na vitória de Paul e mais dinheiro no triunfo de Tyson.
Chegava a hora, 1h da manhã em Portugal. Com uma qualidade incrível de imagem e a possibilidade de escolher comentários em quatro línguas diferentes (inglês, francês, espanhol América Latina e português Brasil), a Netflix já estava a ganhar antes de começar. Sim, ainda havia inúmeras cadeiras vazias entre os 80.000 bilhetes vendidos quando começou o primeiro combate do cartão entre o indiano Neeraj Goyat e o brasileiro Whindersson Nunes mas o espectáculo estava garantido entre a atuação das cheerleaders dos Dallas Cowboys ao som do Thunderstruck dos AC/DC e a presença de ex-libris do canal como os elementos do Squid Game nas primeira filas para promoverem a segunda temporada. De seguida, havia títulos em disputa, entre Mario Barrios e Abel Ramos e entre Katie Taylor e Amanda Serrano mas as atenções ainda estavam centradas na história do auricular de Holyfield que falhou antes da “ajuda” de Lennox Lewis.
Party Time#PaulTyson pic.twitter.com/pzDPxFIR4s
— Mike Tyson (@MikeTyson) November 16, 2024
Só quatro horas depois chegou o momento que todos ansiavam mas que terminou sobretudo em críticas de todo o lado. Vergonha e ultraje foram duas das palavras mais utilizadas para comentar um combate (algo que alguns recusaram apelidar como tal) que terminou com a vitória nos pontos por unanimidade para Jake Paul por 79-73, 79-73 e 80-72. Como alguém recordava, existia uma esperança de poder fazer uma viagem aos anos 80 ou 90 para assistir ao velho então novo Tyson que destruía adversários e era considerado o pior homem do mundo. Em parte, no primeiro combate, houve uns traços. Aliás, ficou sempre a sensação de que aquele que foi o campeão mundial mais novo de sempre de pesos pesados podia ter acabado com tudo ainda no primeiro assalto, quando Paul dava sinais de fraqueza. Não arriscou, deixou o combate continuar em alguns momentos sem motivos de interesse (só quatro golpes no quinto assalto) e acabou por perder, sendo que houve pelo meio assobios vindos do público e pessoas que decidiram deixar mais cedo o recinto…
“Foi uma honra. O Mike Tyson é uma lenda, o maior da história, o pior tipo do mundo, uma inspiração para mim. Foi muito duro para mim”, comentou Jake Paul após o combate que, ao valer para o registo, aumentou para 11-1 a sua marca no boxe profissional. “Estou feliz com o que consegui fazer”, destacou Mike Tyson, que admitiu querer agora fazer mais combates (levantando já a hipótese de defrontar o irmão de Jake Paul) e comentou também o porquê de estar várias vezes a morder as luvas: “Tenho esse costume de fazer isso, tenho uma fixação com dentadas”. O principal combate da noite centrou todas as atenções naquele que foi um KO para a modalidade e um OK para a aposta da Netflix mas os elogios ficaram mesmo para o que se tinha passado antes entre Katie Taylor e Amanda Serrano pelo título – isso sim um “real” combate…