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o terno animal do rock’n’roll que “ainda assusta e ainda fascina” – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Nov 16, 2024


Entre os termos que podem dividir a História num “antes” e num “depois” está a existência dos Velvet Underground. Antes, o rock’n’roll ameaçava, deixava avisos, era um potencial agente de caos e guerrilha. Depois, concretizou. Com os Velvet Underground, o rock’n’roll tornou-se um pesadelo vivo, fez-se tóxico, agressivo, desligou todas as luzes que as guitarras e as vozes em harmonia tinham acendido. Mas, nessa oposição, a banda gerou um outro tipo de revelação: a partir das caves mais bafientas tornava-se possível encontrar um abrigo para todos os que nunca tiveram lugar, família, pouso ou abraço.

Ao comando desta locomotiva imparável através das paragens infernais da insegurança, da indiferença e da dependência estava Lou Reed (1942-2013), Lewis de nome próprio, filho de uma família que duvidou dele até ao limite, que o entregou a tratamentos de choques elétricos para o livrar — do que seria mesmo? — da ansiedade, da depressão ou das tendências homossexuais, algum deus o ajudasse. Também ele encontrou no rock’n’roll primário a fuga que todos os jovens inevitavelmente descobriam entre as décadas de 50 e 60. Também ele viu na simplicidade do doo wop (quatro acordes, às vezes menos, e o mundo todo numa guitarra) a plataforma para começar algo novo. A isso juntou Nova Iorque, freakshow fascinante e sedutor que podia aliviar todas as dores, mesmo que apenas por pouco tempo, até doer outra vez, mais e mais.

Excessivo nos consumos e nas relações, intenso enquanto líder de uma banda, ambíguo no papel de animal sexual, deixou-se de grupos e fez-se punk rocker original em modo solitário. Foi amigo privado e privilegiado de artistas que mudaram o mundo, mas também se distanciou deles sempre que assim teve de ser. Navegou o corpo entre mulheres, homens e toda a fluidez possível da carne, até encontrar em Laurie Anderson a tranquilidade que sempre parecera perseguir. E morreu, aos 71 anos, entre amores, amigos e uma playlist de quem escrevia a pop contemporânea de então.

A história de Lou Reed, o homem que mudou a música sem nunca ter sido um fenómeno de vendas de discos, que inventou o rock alternativo para depois o tornar experimental e teatral, seria impossível de criar numa sala de ficcionistas, mas é uma das mais sedutoras, intrigantes e influentes vidas reais com banda sonora própria. Biografias já as havia, mas o crítico e autor Will Hermes escreve em O Rei de Nova Iorque os detalhes que precisávamos de ler, vai até ao fim de todos os finais e faz o melhor dos usos do arquivo que o mais maravilhoso dos sacanas guardou. Falámos com o autor, um fã eterno que assim cumpriu um sonho.

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A capa da edição portuguesa de “Lou Reed, o Rei de Nova Iorque”, de Will Hermes (Casa das Letras)

Porquê uma nova biografia de Lou Reed? Havia algo por dizer?
Quando o Lou morreu, muita gente disse-me “não há uma biografia realmente boa dele”. E há 10 anos havia menos do que há agora, a morte dele motivou várias pessoas a escrever. Já havia a de Victor Bockris [Transformer: The Complete Lou Reed Story], que terminava nos anos 90. Pensei muito sobre a possibilidade de escrever uma, até porque nunca tinha escrito uma biografia. Já fiz muitos perfis. Fiz um livro sobre Nova Iorque nos anos 70 [Love Goes to Buildings on Fire], ainda que seja um livro tão cultural como social. E também por isso, uma das razões mais fortes para avançar foi a forma como Lou Reed simbolizou todo um cruzamento entre diferentes faces de Nova Iorque no pós-Segunda Guerra Mundial. Ele trabalhou com Andy Warhol, ele estava ligado aos poetas da cidade, tinha ligações aos cineastas. O Lou era visto como o “padrinho do punk” e manteve-se ativo até ao fim, numa etapa já avançada lado a lado com a companheira, Laurie Anderson. Ou seja, encontrei aqui uma oportunidade não só de escrever sobre o Lou Reed, de uma forma biográfica mais normal, mas também de aplicar uma lente mais abrangente sobre a Nova Iorque da segunda metade do século XX e do início do século XXI.

E até que ponto existe também uma relação emocional com a obra de Lou Reed? Este é também o livro de um fã?
Sou um enorme fã dos Velvet Underground há muitos, muitos anos. Se olharmos para a história das melhores bandas de rock americanas, os Velvet podem muito bem estar no topo. Mais: se o critério a aplicar for o de pessoas que tenham deixado um legado e uma influência que permanece, é difícil conseguir concorrer com Lou Reed. Portanto, tenho de dizer que sim, tudo isto pesou muito na decisão de escrever o livro.

Os Velvet Underground, enquanto banda, têm também esse estatuto que Lou Reed de forma individual tem? Não com os artistas, com os músicos, mas com as pessoas no geral, com o público: a banda é uma referência incontornável, popular e assumida, em 2024?
Não estou certo que assim seja… A verdade é que, por um lado, os Velvet são como divindades do rock, reconhecidos e legitimados. Mas, por outro, é como se nunca tivessem deixado de ser “de facto” underground. Nunca passaram para o mainstream, nunca se tornaram populares no sentido “pop”. A música deles continua a ser procurada para filmes, aparece na televisão, mas parece sempre uma novidade. Parece sempre música de uma banda que apareceu agora para fazer algo diferente. Talvez porque nunca tenha sido consumida ou reproduzida de forma massificada, quando a ouvimos ainda soa a coisa nova. E quem a ouve agora pela primeira vez, continua a descobrir uma espécie de vanguarda. Quem ouve o Lou Reed hoje pela primeira vez ainda se surpreende, ele ainda assusta e ainda fascina, tudo ao mesmo tempo. Aliás, sempre estive certo de que este livro chegaria a pessoas que sabiam muito pouco sobre o Lou Reed porque o descobriram há muito pouco tempo, que não sabiam que ele era importante.

Para escrever este livro teve a oportunidade de fazer boa parte da pesquisa através daquilo que já apelidou de “grande arquivo de Lou Reed”, fruto de doações de Laurie Anderson. Que arquivo é esse?
É o arquivo da New York Public Library for the Performing Arts, que é uma das instituições integradas no sistema de bibliotecas da cidade. Fica no Lincoln Center, que é, se assim podemos dizer, o templo da alta cultura em Nova Iorque. É onde fica a Metropolitan Opera, é onde a Companhia de Bailado de Nova Iorque atua. Demorou algum tempo até o arquivo ficar disponível ao público. Comecei este trabalho em 2014, só consegui aceder ao arquivo em 2019. Antes disso, viajei pelos Estado Unidos, a fazer pesquisa noutros arquivos. Um na Universidade de Columbia, com muito material dos Velvet Underground, outro na Universidade do Texas. Mas o de Nova Iorque, o que foi doado pela Laurie Anderson, tem algo que o torna extraordinário.





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