Vivemos tempos de mudança acelerada, onde a ordem global que parecia estabelecida desde o fim do século XX está a ser desafiada de formas cada vez mais imprevisíveis. A ideia de uma “paz perpétua”, tão presente nos anos que se seguiram ao colapso da União Soviética, dá hoje lugar a um mundo marcado por tensões crescentes entre democracias liberais e regimes autoritários. Se olharmos para o panorama atual — com guerras, disputas tecnológicas, conflitos económicos e batalhas pela narrativa ideológica —, torna-se inevitável traçar um paralelo com a Guerra Fria, o período que moldou profundamente o século XX. Mas será que aprendemos com as lições daquele tempo? Ou estaremos, uma vez mais, a enfrentar um conflito de proporções históricas, para o qual não estamos preparados?
A Guerra Fria, que moldou o mundo entre 1947 e 1991, foi um dos períodos mais intensos e transformadores da história contemporânea. Apesar de se chamar “fria”, o termo é algo enganador, pois esse confronto entre as superpotências, Estados Unidos e União Soviética, deu origem a inúmeros conflitos armados e guerras que devastaram países em diferentes continentes. Estes conflitos, muitas vezes denominados guerras por procuração (proxy wars), surgiram porque os dois blocos ideológicos evitavam um confronto direto, mas não hesitavam em apoiar, financiar e até intervir em disputas regionais que reforçassem as suas esferas de influência.
Portugal desempenhou um papel estratégico durante este período, apesar de muitas vezes ser ignorado nas grandes narrativas. A sua localização no Atlântico Norte conferia uma vantagem tática significativa ao bloco ocidental, especialmente no âmbito da NATO, onde Portugal era um membro fundador. As bases nos Açores, por exemplo, foram vitais para operações logísticas, incluindo durante a crise dos Mísseis de Cuba em 1962, quando a ligação entre os Estados Unidos e a Europa foi reforçada por este ponto estratégico.
Um dos primeiros grandes conflitos da Guerra Fria foi a Guerra da Coreia, entre 1950 e 1953, que cristalizou a divisão entre o Norte comunista, apoiado pela China e pela URSS, e o Sul capitalista, respaldado pelos Estados Unidos e seus aliados. Este conflito, que terminou num impasse e numa trégua instável, permanece até hoje como um dos legados mais visíveis daquela época. Nos anos seguintes, a Guerra do Vietname tornou-se o maior exemplo do envolvimento militar dos Estados Unidos para conter o avanço comunista, levando a um conflito devastador que durou de 1955 a 1975, ceifando milhões de vidas e dividindo profundamente a sociedade norte-americana.
Outros conflitos importantes marcaram a Guerra Fria. No Médio Oriente, a rivalidade entre as superpotências traduziu-se num apoio militar e político às partes envolvidas nas guerras Israelo-árabes, como a Guerra dos Seis Dias, em 1967, e a Guerra do Yom Kippur, em 1973. Estas guerras não só alimentaram a tensão global como consolidaram o Médio Oriente como uma das regiões mais voláteis do planeta. A invasão soviética do Afeganistão, em 1979, foi outro momento crucial, transformando aquele país numa zona de guerra entre os soviéticos e os mujahideen, armados pelos Estados Unidos num esforço para desgastar o bloco comunista. Este conflito revelou os limites da capacidade militar da União Soviética e é amplamente considerado um dos fatores que precipitou a sua queda.
A influência de Portugal na Guerra Fria não se limitou à sua geografia. Os conflitos nos seus territórios ultramarinos, como Angola e Moçambique, foram rapidamente transformados em teatros de guerra por procuração, onde Estados Unidos e União Soviética apoiaram facções opostas. Este envolvimento globalizou as guerras de descolonização, mostrando como até países periféricos eram atraídos para a dinâmica bipolar da época.
A Guerra Fria não se limitou a conflitos regionais; revoltas populares também desafiaram o domínio soviético. Na Europa de Leste, eventos como a Revolução Húngara de 1956 e a Primavera de Praga, em 1968, mostraram o descontentamento com os regimes comunistas, sendo reprimidos brutalmente pelo Exército Vermelho. No entanto, esses movimentos plantaram as sementes de um futuro questionamento da hegemonia soviética.
No entanto, as democracias ocidentais triunfaram na Guerra Fria, e a razão para isso pode ser encontrada nas características das gerações que enfrentaram esse período. Estas gerações foram moldadas pelas dificuldades do início do século XX: as duas guerras mundiais, a Grande Depressão, e o confronto com regimes totalitários. Homens e mulheres que cresceram e lideraram neste contexto desenvolveram uma resiliência notável e uma visão estratégica que se revelaram cruciais para a vitória no confronto com o bloco comunista. É o que se pode entender pela lógica de que “tempos difíceis criam homens fortes”. Líderes como Winston Churchill, John F. Kennedy e Ronald Reagan são exemplos de figuras que souberam equilibrar idealismo com pragmatismo, enfrentando desafios sem precedentes com firmeza e inovação.
Por outro lado, o colapso da União Soviética e o fim da Guerra Fria inauguraram um período de estabilidade e prosperidade relativa para as democracias liberais. Essa estabilidade gerou um contexto de “tempos fáceis”, onde as ameaças existenciais pareciam ter desaparecido. O resultado foi o surgimento de novas gerações que cresceram num ambiente onde os valores democráticos eram vistos como garantidos. Este conforto, paradoxalmente, contribuiu para a criação de lideranças menos preparadas para os desafios de um mundo onde as tensões geopolíticas voltam a emergir de forma acelerada. O que enfrentamos agora não é apenas uma crise de liderança, mas uma ausência de visão estratégica para lidar com uma nova fase da história: a Segunda Guerra Fria.
As próximas décadas apresentam-se como um período de confronto global com dinâmicas que, embora diferentes, ecoam muitas das tensões vividas durante a Guerra Fria. Contudo, ao contrário da Primeira Guerra Fria, em que a ideologia — capitalismo contra comunismo — era o motor principal, a Segunda Guerra Fria desenrola-se sob novos paradigmas. O eixo central deste conflito não é tanto ideológico, mas sim a oposição entre democracias liberais e regimes autoritários, com disputas que abrangem a economia, a tecnologia, a narrativa geopolítica e, inevitavelmente, a esfera militar.
Os conflitos desta nova Guerra Fria já começaram a desenrolar-se. Olhando para o passado recente, o ataque russo à Geórgia em 2008, com a ocupação das regiões separatistas da Abecásia e da Ossétia do Sul, foi um prenúncio claro de que a Rússia de Vladimir Putin não hesitaria em usar a força militar para reverter a ordem pós-Guerra Fria. A anexação da Crimeia em 2014 foi outro passo importante nesse sentido, desafiando diretamente as fronteiras reconhecidas internacionalmente e desestabilizando a Ucrânia. Mais recentemente, a invasão russa da Ucrânia em 2022 trouxe o conflito para um novo patamar, com a Europa e os Estados Unidos unindo-se para fornecer apoio militar e económico a Kyiv, enquanto a Rússia busca aliados no Irão, na China e em outras autocracias.
Se olharmos além da Europa, o Médio Oriente também é palco de tensões que refletem esta dinâmica. A intervenção russa na Síria, a partir de 2015, consolidou a posição de Bashar al-Assad e demonstrou a capacidade de Moscovo de projetar poder militar fora das suas fronteiras imediatas. Ao mesmo tempo, o Irão, com o seu programa nuclear e influência em países como o Líbano, o Iraque e o Iémen, permanece um desafio constante para as democracias ocidentais e seus aliados regionais, como Israel.
No entanto, é no Pacífico que os futuros conflitos parecem mais iminentes. A China tem vindo a aumentar a sua pressão militar e diplomática sobre Taiwan, um território que considera uma província rebelde. Uma possível invasão de Taiwan seria um evento de magnitude global, não apenas pela importância estratégica da ilha no fornecimento de semicondutores, mas também porque obrigaria os Estados Unidos e os seus aliados a tomar uma decisão sobre uma intervenção direta. As manobras militares chinesas na região, combinadas com a militarização das ilhas artificiais no Mar do Sul da China, são sinais claros de que Pequim está a preparar-se para uma escalada.
A Coreia do Norte, com o seu programa nuclear e comportamento errático, continua a ser um dos maiores desafios de segurança na região. Sob o regime de Kim Jong-un, o país intensificou os testes de mísseis balísticos, incluindo aqueles com capacidade intercontinental, aumentando as tensões com os Estados Unidos e aliados regionais, como a Coreia do Sul e o Japão. Recentemente, a colaboração com a Rússia durante a guerra na Ucrânia trouxe à luz outra dimensão perigosa da influência norte-coreana. O envio de milhares de soldados norte-coreanos para apoiar as forças russas demonstra não apenas uma aliança estratégica, mas também o uso de recursos humanos como moeda de troca, aprofundando as divisões globais e ampliando os riscos de instabilidade.
Outro possível foco de tensão futura é o Ártico. À medida que o gelo derrete, novas rotas marítimas e reservas de recursos naturais tornam-se acessíveis, levando a uma corrida por controlo entre potências como os Estados Unidos, a Rússia, a China e países nórdicos. O Ártico, antes considerado um território de cooperação, poderá transformar-se num palco de disputas acirradas à medida que os interesses estratégicos se sobrepõem à retórica ambiental.
Os conflitos económicos também são uma característica central desta Segunda Guerra Fria. A guerra comercial entre os Estados Unidos e a China, iniciada em 2018, foi apenas o início de uma disputa muito mais ampla. A proibição de empresas chinesas, como a Huawei, em países ocidentais reflete os receios de que tecnologias estratégicas possam ser usadas como armas de espionagem. Por outro lado, a China procura reduzir a sua dependência de semicondutores ocidentais, investindo em tecnologias próprias, enquanto a corrida pelo domínio da inteligência artificial e da computação quântica define as bases para o futuro do poder global.
Portugal, como parte integrante da União Europeia, também enfrenta desafios relacionados a este confronto económico. A dependência de economias europeias de bens produzidos na China, bem como a importância estratégica de investimentos chineses em infraestruturas europeias, como portos e energia, colocam questões relevantes sobre a soberania económica. O Porto de Sines, por exemplo, já é visto como uma peça-chave na ligação entre a Europa e os mercados globais.
Paralelamente, a competição pela influência em países em desenvolvimento intensifica-se. Iniciativas como a “Belt and Road Initiative” (Nova Rota da Seda) da China são uma demonstração clara de como Pequim procura expandir a sua influência económica e geopolítica em África, na Ásia Central e na América Latina. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos e a União Europeia tentam reagir, promovendo parcerias alternativas que ofereçam aos países-alvo opções menos dependentes de regimes autoritários.
Em termos militares, a Segunda Guerra Fria não é apenas um confronto de palavras e economia. A modernização de arsenais nucleares por parte da Rússia, o desenvolvimento de mísseis hipersónicos pela China e pelos Estados Unidos, e a militarização do espaço criam novos cenários de confronto. Além disso, o uso de guerras híbridas, como desinformação, ciberataques e manipulação de processos eleitorais, torna este conflito mais difuso, mas não menos perigoso.
Portugal, no contexto das ameaças híbridas, enfrenta também desafios específicos. O país foi alvo de ataques cibernéticos em infraestruturas críticas e desinformação através de plataformas digitais. Estes eventos mostram que, embora geograficamente pequeno, Portugal não está imune às dinâmicas globais da Segunda Guerra Fria. Investimentos em cibersegurança e na proteção das instituições democráticas são cruciais para garantir a resiliência nacional.
Assim, o mundo avança para uma era de confrontos cada vez mais complexos, onde conflitos passados, como a invasão da Geórgia, conflitos presentes, como a guerra na Ucrânia, e potenciais conflitos futuros, como a disputa por Taiwan ou o controlo do Ártico, definem o cenário de uma Segunda Guerra Fria. Neste novo contexto, as democracias enfrentam desafios internos e externos que irão determinar se conseguem preservar os valores e instituições que as tornaram triunfantes no passado, ou se sucumbirão às forças de regimes autoritários cada vez mais confiantes e ambiciosos.
Se o século XX foi definido pela luta entre o capitalismo e o comunismo, o século XXI parece estar a ser moldado por um confronto mais amplo entre democracias e autocracias. Esta Segunda Guerra Fria apresenta desafios únicos, uma vez que os blocos em confronto estão interligados de formas que não têm precedentes históricos. Embora os regimes autoritários de hoje, como os da China e da Rússia, sejam menos ideologicamente homogéneos do que os do passado, eles partilham uma visão comum de oposição às democracias liberais, procurando redesenhar o sistema global para favorecer os seus próprios interesses.
Por outro lado, as democracias enfrentam um teste interno tão desafiador quanto o externo. As pressões populistas, a erosão da confiança nas instituições e as divisões sociais crescentes ameaçam minar a coesão e a força das democracias ocidentais. Estas fraquezas são exploradas por regimes autoritários que, por meio de campanhas de desinformação, ciberataques e apoio a movimentos políticos disruptivos, procuram enfraquecer as democracias por dentro. A questão central é se as democracias estão dispostas a reconhecer esta ameaça e a recuperar a resiliência que as permitiu triunfar na primeira Guerra Fria.
Mais importante ainda, esta Segunda Guerra Fria não será vencida apenas no campo militar ou económico. Os valores que definem as democracias liberais — liberdade, direitos humanos, transparência e o Estado de Direito — precisarão de ser reafirmados num mundo onde esses princípios estão sob ataque constante. Para isso, será necessário um esforço renovado para educar e mobilizar cidadãos, investir em inovação tecnológica que seja compatível com os valores democráticos e promover alianças estratégicas que ampliem o poder das democracias no palco global.
Portugal, como país historicamente associado aos valores da liberdade e da democracia, tem uma responsabilidade acrescida. A sua integração europeia e o seu papel na NATO conferem-lhe um dever de promover estas ideias, não apenas dentro das suas fronteiras, mas também no contexto global.
Por fim, esta nova era de tensões globais deve ser encarada como um desafio à altura do espírito humano. Se tempos difíceis realmente criam homens fortes, talvez estejamos no limiar de uma nova geração de líderes e cidadãos preparados para enfrentar as complexidades deste mundo interconectado. A Segunda Guerra Fria não será apenas uma luta pelo poder, mas uma disputa pela alma do futuro da humanidade. O resultado deste confronto definirá se o próximo século será marcado pela expansão da liberdade ou pela consolidação do controlo autoritário. Cabe às democracias não apenas sobreviver, mas provar que, mesmo nos momentos mais sombrios, os ideais de liberdade e dignidade humana continuam a ser a luz que guia a história.