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“Há algo na psique humana que depende de um inimigo. Tem um papel e uma função, precisamos dele” – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Nov 17, 2024


Em 2015, o anarquista e ativista ecológico Eric McDavid foi libertado da prisão a meros dias de cumprir nove dos 20 anos de pena a que tinha sido condenado por planear colocar bombas em infraestruturas energéticas na Califórnia. Porquê? Porque entretanto se provou que tinha sido aliciado a cometer tais atos por “Anna”, uma informadora do FBI que se infiltrou no seu coletivo enquanto agent provocateur. A demonstrá-lo estavam 2,500 páginas de documentos que as autoridades propositadamente ocultaram — incluindo cartas de amor entre McDavid e Anna. Antes, em 2011, o mundo ficou a saber que o ativista ambiental britânico Mark Stone era, na verdade, o agente infiltrado Mark Kennedy, agindo nas sombras durante sete anos e manipulando várias mulheres a ser sexo com ele, algo que fez com o conhecimento dos seus superiores. Ironia das ironias, não só as vítimas processaram a polícia, como o próprio, caído em desgraça, também, o fez — alegando não ter sido bem preparado para evitar apaixonar-se.

Estes são apenas dois de muitos casos de vigilância sobre comunas rurais e grupos ativistas que inspiraram Rachel Kushner a escrever O Lago da Criação, publicado em Portugal pela Relógio d’Água e um dos títulos incluídos na shortlist de finalistas do Booker Prize deste ano. Em Lisboa a convite do LEFFEST, a escritora norte-americana de 56 anos — uma das mais celebradas da sua geração — contou ao Observador as motivações e os anseios que a levaram a escrever um romance cuja criação descreve como tendo sido “a experiência mais divertida” da sua vida.

A história segue “Sadie Smith”, o pseudónimo de uma agente norte-americana desgraçada e a trabalhar a soldo, contratada por uma empresa para infiltrar-se no Moulin, um coletivo anarquista no meio rural do sul de França que pode, ou não, ter perpetrado atos de sabotagem contra mega empreendimentos agrícolas na região. Após seduzir Lucien, um realizador parisiense, que lhe abre a porta para o grupo, tem como objetivo provocar a comuna e o seu líder, Pascal Balmy, a radicalizar-se e inevitavelmente entrar em rota de colisão com as autoridades.

O que Sadie não esperava era começar a deixar-se afetar pelos escritos de Bruno Lacombe, mentor do grupo e ativista dos tempos do Maio de 68, que deixou a civilização para ir viver para as cavernas da região como um ermita. Servindo, como Kushner descreve, como “o coração do livro”, Bruno, mais do que rejeitar a vida moderna, indaga-se onde é que falhámos e para onde seguimos. “Se Deus existe, pode ser um homem como Bruno ou uma pessoa como ele, porque mesmo que algumas das suas teorias sejam um pouco lunáticas, como se estivesse a criar mitos, ele pergunta: como podemos sair do carro sem condutor que está a aproximar-nos da extinção? Acho que é uma pergunta justa”, afirma.

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Depois de Telex de Cuba, Os Lança-Chamas e O Quarto de Marte, Rachel Kushner volta a apontar o olhar para os colocados e os que se colocam à margem da sociedade, algo que, defende, advém em parte de ser uma escritora “virada para o exterior e que faz relatórios desse mundo”. Assim, escreveu um romance que abraça os anseios do nosso tempo — não só os climáticos, mas, de certa forma, o que é que andamos aqui a fazer.

A capa de “O Lago da Criação”, de Rachel Kushner (Relógio D’Água)

O ato de escrita é por vezes associado à procura tortuosa por inspiração e criatividade. No caso de O Lago da Criação, tem dito que foi uma das experiências mais divertidas da sua vida. Em que sentido?
Quero contextualizar dizendo que gosto bastante de viver. Nem toda a gente gosta. Mas escrever o livro, assim que comecei a fixar o texto, foi um período de prazer quase maníaco, porque escrevi-o todo em 14 meses, foram dias longos, de levantar-me às cinco da manhã e escrever até às sete da noite. Conseguia ver tudo o que estava a descrever e, quanto mais mergulhava no texto, mais vívidas e precisas se tornavam as imagens, foi como se um filme se formasse à minha frente. Quase comecei a preferir o universo paralelo que estava a criar ao universo real em que vivo, mesmo que, para mim, a vida seja muito sagrada e abençoada até nos pormenores mais banais. Acredito em tentar aceder às pequenas alegrias de todos os dias. Mas os primeiros três anos e meio a tentar perceber o livro não foram assim.

Em que sentido?
No fundo, já andava a pensar num romance como este, talvez desde finais de 2008. Conheço alguns franceses que formaram uma comuna numa zona rural de França e foram invadidos pela polícia. O meu marido tinha uma espécie de ligação a eles e, por isso, eu tinha uma proximidade com este mundo que me permitiria reproduzi-lo sob a forma de um romance. Mas ainda não tinha pensado em quem seria o narrador, sendo que esta é uma componente essencial. Até podemos ter ideias e sentimentos, a estética e o conhecimento de uma região. Aliás, esta parte rural de França — a que as pessoas chamam “La France profonde” [“A França profunda”] —, é algo que eu realmente compreendo porque passei lá muito tempo. São lugares onde os parisienses não costumam ir, e as pessoas que lá vivem nunca estiveram em Paris. Aliás, estão-se a cagar para Paris.

Desprezam-na, até.
Sim, bem vimos o que aconteceu quando os Coletes Amarelos chegaram a Paris e começaram a incendiar coisas e a pintá-las com spray. O que queria dizer é que é possível ser capaz de reproduzir a sensação natural de uma região, talvez compreender algo sobre as lutas dos agricultores, assim como algumas diferenças e alguns elos entre eles e os jovens anarquistas que vêm das cidades e têm formação universitária. Ou entender a história da França rural, que é incrível numa lógica de resistência, não apenas na Segunda Guerra Mundial com a verdadeira Resistência francesa, mas durante centenas de anos antes, no que toca às revoltas camponesas e ao tipo de orgulho que as pessoas têm nestas áreas. Ou podemos ter uma relação com as cavernas: o sítio a que vou em França é todo constituído por cavernas de calcário, e Lascaux fica lá perto, sendo que há outras diferentes onde ainda se pode entrar. Podemos ter todas estas sensações e noções, mas isso não é suficiente para escrever um romance.

O que fica a faltar? Uma estrutura?
Sim, e precisa de uma perspetiva. E um dia, de repente, apercebi-me. Comecei a escrever a primeira página do livro — que já não é a atual primeira página — e fi-lo na perspetiva do Bruno. Tinha este conceito de um ancião para o grupo, alguém que concebi como um refugiado do longo século XX: perdeu a família na Segunda Guerra Mundial, foi muito moldado pelo maio de 1968, viveu os cumes da possibilidade revolucionária e depois os baixos do colapso dessa possibilidade nos anos 70, sendo que depois mudou-se para esta região rural pensando que “o campesinato é o verdadeiro sujeito político”. Na altura em que o romance se passa, por volta de 2013, decidiu que o capitalismo veio para ficar e que não há forma de o mudar, mas está convencido de que o projeto humano não é uma causa perdida e que podemos renovar a nossa consciência. Por isso, tive a ideia deste homem que rejeitou a vida contemporânea, se bem que não de uma forma niilista, pelo menos não é assim que o concebo; ele é uma espécie de pessoa muito gentil e afirmativa, mesmo estando totalmente separado dos demais. Ele é a pessoa mais ligada à comunidade no livro, apesar de estar totalmente isolado e de não o conhecermos. É um eremita, mas está na comunidade humana, enquanto Sadie circula constantemente entre as pessoas. mas é ontologicamente… eremita é a palavra errada, é uma solipsista. Uma pessoa profundamente só, talvez numa espécie de crise ontológica, porque como é que alguém se pode mover pelo mundo sem ter um sentido de responsabilidade perante as outras pessoas? Ela diz “deixo o meu lixo onde quer que vá, não há razão para o limpar uma vez que nunca mais volto ao mesmo sítio duas vezes”.





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