Quando, a propósito das recentes eleições, se procurou identificar o que mais preocupava os norte-americanos, os dados apontaram claramente para a economia – ainda que muitos especialistas considerassem este aspeto surpreendente: na sua perspetiva, a economia “está ótima”. Trata-se de uma espécie de “great disconnect”, que um artigo do The New York Times descreve desta forma:
“De acordo com os parâmetros habituais, a economia está forte. A inflação abrandou significativamente. Os salários estão a aumentar. O desemprego está próximo do mínimo dos últimos cinquenta anos. A satisfação profissional está a crescer. No entanto, os norte-americanos não veem as coisas necessariamente desta forma.”
Não é, na verdade, uma desconexão muito diferente da nossa e, provavelmente, repete-se em muitos países europeus:
“As pessoas não se estão a comportar como se comportam quando acreditam que a economia está má. Estão a gastar, a passar férias e a mudar de emprego como costumam fazer quando acreditam que a economia está boa.”
O que muitos norte-americanos afirmam é que, apesar de serem capazes de satisfazer os seus compromissos essenciais, no final do mês sobra muita “irritação e ansiedade com os preços, a pandemia e a política” e muito pouco dinheiro. E as dificuldades económicas são maiores para aqueles que não detêm diploma universitário: têm salários mais baixos, menos benefícios e trabalhos fisicamente mais exigentes – e estas pessoas constituem a maioria da população.
Talvez isto fosse o suficiente para indicar a decisão final do pêndulo eleitoral: afinal, a maioria das sondagens apontava Donald Trump como sendo mais competente em assuntos económicos, e Kamala Harris optou por focar-se em outros temas, sem se distanciar de Biden. Mas a dimensão económica também tem servido para analisar outra tendência eleitoral: os homens tendem a preocupar-se mais com a economia e isso reforçaria a divergência política face às mulheres, que têm revelado uma inclinação pró-democrata.
Afirmar, contudo, que os homens tendem a preocupar-se mais com questões económicas exige uma interpretação mais subtil. É que ela remete para uma realidade pouco falada, mas que tem vindo, aos poucos, a revelar-se e que se prende com o impacto que o novo mundo das políticas de igualdade está a ter nos homens.
Para nos debruçarmos sobre este tópico, temos de começar pelo trabalho de Richard Reeves, fundador do American Institute for Boys and Men. Depois de décadas a estudar questões de desigualdade, Reeves deparou-se com dados preocupantes no que diz respeito ao sexo masculino e documentou-os em 2022 com a publicação de Of Boys and Men: why the modern male is struggling, why it matters, and what to do about it. A conclusão do seu trabalho é simples: os rapazes (e os homens) encontram-se em dificuldades.
Podemos apresentar o argumento de Reeves considerando três dimensões: ensino, economia e integração social, embora elas se entrecruzem muitas vezes. Comecemos pelo ensino. Reeves apresenta geralmente o seu argumento a partir do seguinte dado: em 1972, quando o Title IX foi aprovado, procurando garantir condições de igualdade para as mulheres nas universidades norte-americanas, o intervalo entre homens e mulheres a completar o ensino universitário era de 16 pontos percentuais. Em 2023, esse intervalo passou a ser de 18 pontos percentuais, mas em sentido inverso:
Para o autor, é surpreendente que este número não seja alvo de preocupação, uma vez que é revelador de um conjunto de dificuldades que os rapazes têm sentido na escola: reprovam mais, têm piores resultados, entram em menor número na universidade e desistem em maior número do que as raparigas. E parte relevante da justificação é biológica: não só é mais difícil para os rapazes adaptarem-se à disciplina física que a escola exige (sobretudo se considerarmos a crescente diminuição de atividades físicas e intervalos), como os meninos amadurecem mais tarde. Pensemos, nomeadamente, no amadurecimento do córtex pré-frontal: aquela parte fundamental do cérebro que nos permite tomar decisões de longo prazo e reprimir o desejo imediato (como jogar playstation) com vista a objetivos de longo prazo (como estudar para o teste de amanhã que nos permitirá ampliar a hipótese de entrar na universidade). Isto acontece mais tarde nos rapazes, o que os deixa em desvantagem na competição escolar.
Mas há um outro aspeto preocupante, e que já se vai sentindo entre nós. Nos Estados Unidos, praticamente um em cada quatro rapazes na escola é diagnosticado com problemas de desenvolvimento ou de concentração: como sentem mais dificuldades em estar sentados durante tantas horas e se revelam mais desafiantes, a solução tem sido medicá-los. Mas Reeves pergunta: são os rapazes que estão a falhar na escola ou é a Escola que está a falhar aos rapazes?
Em termos económicos, o cenário é igualmente desafiador: a maioria dos homens norte-americanos ganha hoje menos do que a maioria dos homens ganhava na década de 1970 (ajustado à inflação, naturalmente), sobretudo em resultado de os trabalhos que tradicionalmente lhes cabiam, e que eram bem pagos (há mesmo quem defenda que eram excessivamente bem pagos), terem desaparecido devido aos processos de relocalização e automação. Sem os velhos empregos e sem salários que permitam sustentar uma família, não admira que os homens se preocupem mais com a economia – e este é um aspeto fundamental que redesenha o modo como se integram socialmente.
Os estudos coletados por Reeves revelam que os homens têm menos amigos do que as gerações anteriores e afirmam sentir-se sozinhos regularmente. É quatro vezes mais provável que cometam suicídio, três vezes mais provável serem afetados por drogas e álcool do que as mulheres e são as vítimas principais das “deaths of despair”. Muitos estudos reportam o sentimento de se sentirem obsoletos (em resultado da emancipação laboral da mulher) e alvo de alienação parental.
Esclareçamos, quase desnecessariamente, este aspeto: Reeves não recusa que a igualdade entre homens e mulheres seja um valor político – simplesmente recorda que isto não é jogo de soma zero: uns não têm de perder para outros ganharem. E se os meninos se perderem, toda a sociedade perde. Devemos estar, por isso, atentos ao impacto que as nossas medidas têm e aos efeitos contraprodutivos que negligenciamos. Afinal,
“Não se derruba uma ordem social com 12 mil anos sem se experienciarem efeitos culturais colaterais. Neste caso, é o deslocamento de muitos dos nossos rapazes e homens.”
No seu trabalho, Richard Reeves tem apresentado algumas hipóteses para lidar com este problema: os rapazes deveriam entrar para a escola um ano mais tarde do que as raparigas; o ensino vocacional, que entre nós é visto com bastante desprezo, deve ser promovido por ser especialmente vantajoso para os rapazes (Jonathan Haidt, em A Geração Ansiosa, defende o mesmo); e devemos abandonar o uso da expressão “masculinidade tóxica” e todo o peso ideológico que ela carrega.
Mas, acima de tudo, o seu diagnóstico é útil para analisar as atuais tendências de voto: considerando tudo o que foi dito, será surpreendente que se registe uma divergência política dos jovens do sexo masculino para o partido republicano, como revela a análise das recentes eleições presidenciais? De acordo com o The Guardian, a distribuição de votos entre os 18 e 29 anos refletiu-se do seguinte modo:
Os estudos realizados ao longo do último ano já tinham mostrado que, apesar desta tendência pró-republicana, a maioria dos jovens não apresenta um perfil tipicamente conservador e tende a estar de acordo com um conjunto amplo de valores que são entendidos como progressistas – como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a legalização do aborto (dentro de prazos razoáveis) e a igualdade entre homens e mulheres (vejo isto nos meus alunos constantemente). Mas sentem que as suas preocupações não são tidas em conta – pelo contrário, são demonizadas.
A jornalista Claire Cain Miller tem-se debruçado sobre o assunto e, ao entrevistar jovens que planeavam votar em Trump, notou que
“eles se sentem desvalorizados. Disseram que se tem tornado mais difícil ser homem e valorizavam a força num presidente. No entanto, não exprimiam uma misoginia amarga, nem elogiaram as exibições exageradas de força adotadas pela campanha de Trump. As suas preocupações eram sobretudo económicas, como a capacidade de cumprirem o papel tradicionalmente masculino de sustentar uma família.”
Encontramo-nos, contudo, no fio da navalha, como chama a atenção Daniel A. Cox:
“Devido a um sentimento de insegurança crescente, cada vez mais homens jovens estão a adotar uma visão de soma zero da igualdade de género: se as mulheres ganham, os homens inevitavelmente perdem. É uma perspetiva que os torna defensivos e os encoraja a ignorar ou desprezar os desafios persistentes que as mulheres ainda enfrentam, e pode até estimular a misoginia.”
Regressemos a Reeves: se os dados nos mostram que os jovens do sexo masculino estão em dificuldades e as estruturas sociais não têm respostas para eles, não é surpreendente que sejam atraídos por líderes fortes ou figuras que não têm as melhores respostas. Voltaremos ao tema na próxima semana.