Na semana passada, falei aqui das contradições ideológicas do partido Democrata. Apesar de ter vencido, o partido Republicano também se debate com diversas contradições. Desde logo, o discurso anti-establishment é visivelmente paradoxal.
No rescaldo das eleições, ouvimos muitos eleitores e analistas afirmar que os Democratas se tornaram o partido das elites. Nas palavras de uma eleitora que votou em Donald Trump, confessando-se cansada da presença excessiva de celebridades na campanha Democrata, “a Beyoncé não paga as minhas contas”. A afirmação está certa do ponto de vista literal, mas deve ser examinada com cuidado. Afinal de contas, Elon Musk, o homem mais rico do mundo, correu a América em comícios de Trump, e também não consta que pague as contas daquela eleitora. O próprio Trump é, há mais de 40 anos, uma celebridade na vida pública norte-americana, e tão-pouco paga as contas da eleitora, ou vive com as suas dificuldades materiais.
A questão interessante é perceber porque é que algumas celebridades incomodam esta eleitora, e são vistas como parte da elite, enquanto outras são encaradas como sendo anti-establishment. O problema, evidentemente, não é a celebridade, mas o seu discurso. O discurso e a sua sedução simbólica são, sem dúvida, importantes, mas não devemos aceitá-lo prima facie como descrição cabal da natureza e composição dos movimentos políticos.
O confronto não é, portanto, entre uma elite liberal que vota no partido Democrata e os eleitores comuns que rejeitam o establishment e votam em Trump. Na realidade, o próprio establishment está dividido entre ideologias distintas, com interesses e projectos diferentes. Há um establishment por trás do movimento MAGA, tal como há um establishment por trás do movimento liberal. Cada eleitor pode rejeitar um certo establishment (o do outro lado), mas nenhuma candidatura que conta com o apoio de bilionários (alguns deles donos das empresas mais poderosas do mundo), que tem o apoio da maioria do Supremo Tribunal, além da maioria dos políticos actualmente no poder (representantes, senadores e governadores do Partido Republicano) pode dizer-se verdadeiramente anti-establishment.
Ao contrário do que é tantas vezes repetido, ambos os lados incluem elites e povo, como não poderia deixar de ser num sistema de apenas dois partidos que representa 150 milhões de eleitores e em que os partidos são grandes tendas. No passado dia 5 de Novembro, a coligação de eleitores que votou em Donald Trump incluiu não apenas a famosa classe trabalhadora branca e agora homens hispânicos, mas também eleitores ricos (quase 40% dos eleitores de Trump ganham mais de 100 mil dólares anuais), eleitores com educação universitária (mais de 35% do eleitorado Trump) e mulheres (48% do eleitorado Trump). A coligação que votou em Kamala Harris inclui não apenas mulheres negras e elites profissionais brancas com educação superior, mas também muitos eleitores que não foram para a universidade (cerca de metade dos eleitores de Harris não são licenciados) e que auferem rendimentos modestos (26% do eleitorado que votou em Harris ganha menos de 50 mil dólares anuais vs. 28% do lado de Trump).
A questão interessante é, então, perceber como é que essas elites e esses cidadãos comuns, de ambos os lados, coexistem numa mesma coligação política. O que é que pessoas com vidas e interesses tão diferentes veem no mesmo projecto? Talvez a resposta seja que o próprio projecto político não é homogéneo: ele representa coisas diferentes para pessoas diferentes. Em particular, não devemos olhar para o eleitorado que votou em Donald Trump como um único bloco monolítico. Dentro deste eleitorado, encontramos trabalhadores manuais mas também executivos de empresas, conservadores religiosos e eleitores anti-woke mas também eleitores independentes apenas insatisfeitos com a economia, eleitorado republicano e eleitorado muito flutuante. É importante ter em conta esta heterogeneidade interna porque, muitas vezes, esta implica que há prioridades e preferências diferentes dentro da coligação sobre como utilizar o poder agora conquistado. Será que pequenos empresários, operários dos mais diversos sectores e grandes CEOs terão as mesmas preferências quanto à implementação de tarifas e quanto à melhor política migratória?
A segunda contradição dentro do partido Republicano aparece quando tentamos responder a esta pergunta e é de índole mais pragmática. Como sabemos, a inflação cumulativa vivida desde 2020 foi uma das causas da impopularidade de Joe Biden, e que custou esta eleição aos Democratas, com uma perda global de 6 pontos percentuais. Em parte, Trump foi eleito porque as pessoas acreditaram que ele seria capaz de aumentar o seu poder de compra. Paradoxalmente, as suas duas principais bandeiras eleitorais, se implementadas, irão causar aumentos significativos do custo de vida.
A aplicação de tarifas generalizadas às importações (entre 20-60%) podem agradar ao eleitorado no plano simbólico, e podem beneficiar certos sectores industriais, mas constituirão na prática um imposto que será cobrado ao consumidor final, aumentando o preço de inúmeros bens provenientes de outros países a custo baixo, que têm permitido a muitos americanos manter um nível de vida elevado. Simultaneamente, a deportação de milhões de imigrantes ilegais é uma promessa eleitoral popular, mas a redução da mão-de-obra disponível irá também aumentar os preços de inúmeros bens e serviços. Irá Trump cumprir essas promessas eleitorais, mesmo que com custos elevados? Ou irá aplicar as promessas de forma muito parcial, para não arriscar tais consequências?
Finalmente, há uma contradição essencial para perceber a política norte-americana, que está estabelecida há décadas entre quem estuda política norte-americana, mas que é pouco conhecida entre o público geral: do ponto de vista simbólico, o eleitorado norte-americano é conservador, mas do ponto de vista prático, esse mesmo público é, muitas vezes, mais liberal.
Desde os anos 1950, o American National Election Study tem vindo a perguntar aos norte-americanos se se consideram liberais, moderados ou conservadores; sistematicamente, ao longo das décadas, há muito mais eleitores que se identificam como conservadores do que como liberais. Este foi um dos grandes sucessos do movimento conservador do pós-guerra, liderado por figuras como Barry Goldwater e Ronald Reagan. No entanto, há outro padrão sistemático: ainda que mais americanos se identifiquem como conservadores do ponto de vista simbólico, quando respondem, uma a uma, a perguntas sobre assuntos concretos, a posição liberal é, muitas vezes, maioritária, como nos mostra o trabalho já clássico de James Stimson e Christopher Ellis, Ideology in America.
Apesar da vitória de Donald Trump por 1.7 pontos percentuais no voto popular, a eleição de 2024 foi mais uma demonstração desta regra. Em vários referendos estaduais realizados em simultâneo com as eleições para a presidência e o Congresso, as propostas apoiadas pelo partido Democrata foram maioritárias em muitos estados conservadores. No Missouri (onde Trump recolheu 59%), os eleitores votaram para aumentar o salário mínimo e para legalizar o aborto. No Nebraska (60% Trump), instituíram o direito à baixa médica para todos os trabalhadores (incluindo no sector privado) e votaram pela legalização do consumo de marijuana. A grande maioria dos americanos acredita que os ricos, assim como muitas empresas, deveriam pagar mais impostos. Este princípio ficou também evidente no primeiro mandato de Trump, que não conseguiu revogar o Affordable Care Act instituído por Obama, apesar de na campanha de 2016 ter prometido fazê-lo. Em Setembro último, no debate presidencial, Trump afirmou que não iria revogar o Affordable Care Act sem ter algo melhor, mas também afirmou que era muito difícil conseguir algo melhor.
Naturalmente, a vitória de Trump é clara, mas não devemos com isto pensar que o eleitorado norte-americano deixou de ser maioritariamente moderado, de combinar tendências liberais e conservadoras, e se converteu totalmente às propostas mais extremistas de Donald Trump. Exactamente o mesmo seria verdade se o outro lado tivesse ganho.
Esta contradição – um eleitorado conservador do ponto de vista simbólico mas liberal em muitas das políticas concretas – coloca problemas aos dois partidos. Os Democratas têm enorme dificuldade em estabelecer um projecto ideológico popular e coerente, capaz de conquistar os eleitores. Quando ganham eleições, tendem a fazê-lo graças a líderes carismáticos (Barack Obama, Bill Clinton), a uma coligação heterogénea de grupos sociais, ou em função da impopularidade do presidente cessante (como foi o caso de Biden contra Trump, há quatro anos). Nos últimos 50 anos, os Democratas não foram capazes de criar um movimento ideológico e simbólico capaz de atrair o eleitorado.
Já o partido Republicano tem sido muito eficaz a gerar um movimento ideológico capaz de ganhar eleições nos vários níveis de governo e foi, ao longo dos últimos 50 anos, superior no plano simbólico. Neste aspecto, Donald Trump enquadra-se nesta longa tradição Republicana de dominar o plano simbólico e discursivo. No entanto, as elites do partido Republicano têm posições que, nas políticas concretas, estão frequentemente muito mais à direita do que as posições dos votantes que os elegem. Ao longo dos próximos tempos, veremos se estas elites Republicanas vão mais longe do que o eleitorado deseja. Esse é, de resto, o padrão habitual nos primeiros dois anos de um mandato presidencial e que tende a ser penalizado nas eleições intermédias seguintes.