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Diário de um utilizador da CP – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Nov 24, 2024

São 11 horas e 9 minutos no apeadeiro do Vale de Santarém. Pela hora prevista, o comboio  regional, provindo de Tomar e com destino a Lisboa – Santa Apolónia, já deveria ter chegado.  Passam 5, 10, 15 minutos… Até que finalmente se ouvem as primeiras informações: está  atrasado! (como poderia, eu, testemunhar) e “deverá dar entrada pelas 11 horas e 37 minutos”.  Frustado, mas pouco surpreendido, lá esperei.

Esperei, no entanto, sem grande sentido, já que, atingidos os 37 minutos, a marcha-lenta de um  transportador de mercadorias era o único sinal de vida presenciado nas duas pequenas linhas que  rasgam as verdejantes lezírias ribatejanas. Acompanhado por meia dúzia de transeuntes  desconhecidos, partilhávamos a mesma estadia na incerteza e no desalento, mergulhados no  limbo de uma no man’s land ferroviária: e depois do atraso do atraso, será que vem o atraso do  atraso do atraso?

De repente, pela voz da genérica (e sempre triunfante) locutora, é anunciada, a fraco e mau som, a nova hora de chegada do regional: 11 horas e 50 minutos, consumando o atraso de 41 minutos.

Ao entrar no comboio, deambulei até encontrar lugar. Finalmente sentado, folheei mais um livro de companhia de viagem, não tardando a chegada (e neste aspeto a CP é infalível) do célebre “pica”, para mais uma ronda de verificação ferroviária.

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“Peço desculpa, mas eu hoje não pago!” – exclamou, algures na carruagem, uma voz jovem.

Ao virar-me para trás, de modo a testemunhar este sinal de vida de uma carruagem de generalizada e afundada letargia, torno a ouvir – “Apanho este comboio desde Setembro, e, até hoje, não houve um único dia em que o mesmo não chegasse atrasado. Hoje chegou 40 minutos, estou farto! Isto é gozar com a vida das pessoas!”

Era um rapaz, ligeiramente mais novo que eu. Mal ele sabia que eu próprio apanhara o comboio das 11, e não o do meio dia, precisamente, por já estar à espera que chegasse atrasado. Pensei, entusiasmado, que afinal não era o único a possuir o dom de prever atrasos. Pensei, radiante, que  este grito de revolta resultaria, no mais precário dos cenários, numa reflexão coletiva, e sentida, sobre o estado de degradação do glorioso oásis da ordem de funcionamento público.

Mas tudo não passou do pensamento. Impávidos e serenos, os restantes viajantes, como se de um acidente de viação se tratasse, olharam atentamente para o rapaz, escondendo-se entre livros  e telemóveis, sem deferir qualquer comentário. Sem efeito, a barafustação foi cessando, dissolvendo-se, lentamente, até que se restabelecesse a banalidade do silêncio, com ocasionais  soluços e murmúrios de uma memória passada, mas recente.

Não sou um utilizador diário da CP, mas sou recorrente. É rara a semana que não apanhe, ou o regional para Lisboa, ou o intercidades / alfa pendular da linha do Norte. E é ainda mais rara a viagem em que não chegue atrasado ao meu destino, não por 2 ou 3 minutos, mas, no mínimo, por 10 ou 15. Muitas foram as vezes em que fiquei por terra, sem comboio, mesmo quando o  contrário estava assinalado no site. Estes cancelamentos de natureza arbitrária e espontânea, que em muitas estações e apeadeiros não são, sequer, devidamente sinalizados, não são exceções  para quem elege o comboio como o meio de transporte predileto. E muitas foram as vezes,  também, onde greves e mais greves – de quem vê no utilizador público um mero peão de  valorização profissional – baralharam, e de que maneira, a minha vida.

Não tive a oportunidade de falar com este rapaz. Com o atraso, estava com pressa, e a carruagem ia demasiado cheia para me aventurar em tal proeza. Por isso, escrevo este artigo  como forma de agradecimento público pela sentida coragem de quem, à sua maneira, ousou enfrentar as verdadeiras injustiças que assolam a vida do cidadão-comum. De quem não tem  outra opção, ou alternativa viável, senão submeter-se ao deplorável funcionamento dos serviços  públicos.

Pode não ter mudado nada. Pode, até, a frio, ter-se arrependido da sua reação, envergonhado pela fria atmosfera da carruagem. Mas mudou o meu dia. Afinal, não sou apenas eu o especial infeliz, irritado ou inconformado por situações de anormal configuração. Somos todos nós que  sofremos, diariamente, com os esperneios de um Estado quase falhado (que, só ainda não falhou  na sua plenitude, pelos contínuos esforços – e coercivamente obtidos – dos contribuintes).

Se todos nós fossemos como este rapaz – se protestássemos, sem devaneios, nem vergonhas – e  se tivéssemos um pingo de vergonha da gestão danosa de que o dinheiro que investimos nos serviços públicos é alvo, talvez não fosse obrigado a terminar este desabafo com a seguinte consideração: até que provemos o contrário, merecemos o que temos.





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