A história de boca a boca destratou-o mais do que devia. O rei das grandes pompas, hipocrisia beata, rei-sol de solário, tão marginal seria o seu poder, e irremediável esbanjador do ouro do Brasil. É da sua época para a frente que não se pode negar o evidente atraso português, que chocaria com as construções mitómanas de Mafra ou da Capela de S. João Baptista.
Todos fomos obrigados a ouvir esta versão, nos bancos do secundário, à boleia do Memorial do Convento (de José Saramago); mas a verdade é que o reinado de D. João V é bem mais rico do que um punhado de hipocrisias, indecências freiráticas e uns desmandos de rei absoluto. E, se há algum módico de verdade nesta imagem, ela é no mínimo omissa quanto às causas.
D. João V herda um reino dificílimo. Por muito que o afastem três reis do domínio espanhol, a verdade é que há apenas uma de intervalo entre ele e o último Habsburgo a reinar em Portugal. Mais, se nunca seria fácil herdar um reino revoltoso, quanto mais um reino em convulsão interna, com a deposição de um irmão em prol do outro, num processo polémico que dividiu a corte e os grandes chefes militares.
O reino que Dom João V herda perdeu quase sem sobressalto as praças mais significativas do império norte-africano e oriental – com Ormuz à cabeça – e se uma mobilização patriótica repeliu os holandeses de Pernambuco e Olinda, com a valerosa chefia de Salvador de Sá, também condicionou fortemente a ação ultramarina. A cobiça holandesa e francesa sobre as terras sul-americanas mantinha-se, mesmo o império espanhol forçava uma delimitação mais precisa do território brasileiro, pelo que a exploração do Brasil (e, em certa medida, de Angola, essencial na rota brasileira) se impunha com uns contornos a que não era muito possível fugir.
Ora, esta primeira condição – um país em conflito interno, recém-libertado dos vizinhos, numa Europa também ela confusa, com a transferência do poderio Habsburgo para o domínio Bourbon, que reconfigurou também o mapa e as alianças europeias – é talvez das mais importantes para perceber a atuação de D. João V. A sua já não é uma corte de Avis, ou uma corte medieval, com representantes dos vários estados, guildas ou corporações, uma administração descentralizada e verdadeiros senhores ultramarinos? Certamente que não; os primeiros reinados da Dinastia de Bragança lidaram precisamente com os problemas desse mesmo tipo de organização política e administrativa. Mesmo antes da deposição de D. Afonso VI, as conspirações contra D. João IV – que levaram, por exemplo, à prisão de D. Francisco Manuel de Melo – podem ser vistas como o resultado da pressão trazida por um grupo cheio de rivalidades entre si, sem o mecanismo de apaziguamento mais fácil dos séculos anteriores: a administração ultramarina, ou a doação de terras por explorar.
As capitanias açorianas, madeirenses, brasileiras, os monopólios comerciais na costa de África, as tenências das fortificações marroquinas, os postos no Estado da Índia, tudo isto serviu, durante séculos e ao mesmo tempo, como forma de recompensa e de afastamento de personagens inconvenientes, como estratégia apaziguadora, afastando potenciais insurretos, e até como uma estratégia de diluição de importância desta mesma nobreza de um modo que se tornou insustentável.
A quantidade de títulos nobiliárquicos com que a dinastia de Avis abre, comparada com a que chega à dinastia de Bragança é um sinal disto mesmo. Não era mais possível insuflar as honrarias num tempo em que já quase toda a nobreza de corte era várias vezes titulada e acumulava representações de casas históricas a um ponto que estas já apareciam quase desvalorizadas. Nem era possível distribuir postos administrativos num mundo imperial praticamente reduzido ao Brasil, e a um Brasil que implicava um modo de vida muito diferente daquele que os antepassados da nobreza de corte encontrava na Índia. São Paulo, São Vicente, eram muito diferentes, ofereciam condições muito mais duras, do que um Estado da Índia apesar de tudo mais civilizado.