Num dos episódios da primeira metade de Senna, Gabriel Leone (Ayrton Senna) revela um brilho nos olhos enquanto fala da experiência de correr pela primeira vez o Grande Prémio do Mónaco num McLaren (1988), quando a vontade de puxar e puxar e puxar fez com que estivesse a ver a pista como um túnel. Conduzia por instinto e tudo parecia certo. O entusiasmo dos anos de formação, o desejo, a ingenuidade e a fome de correr em pista. É um momento exemplar para explicar tudo o que bate certo e tudo o que corre mal em Senna, seis episódios na Netflix que ficcionam a vida e a carreira do piloto brasileiro que morreu a 1 de maio de 1994, aos 34 anos, depois de um acidente no Grande Prémio de San Marino.
Comecemos pelo bom. Se tem presente o brilhante documentário de Asif Kapadia de 2010 sobre Ayrton Senna, encontrará elementos reconhecíveis. Para lá da cronologia, acontece uma passagem pelos momentos-chave e a sensação de que se está a viver no limite em cada um deles. Em suma, revisita-se a experiência de ver ou rever alguns desses momentos de arquivo do filme de Kapadia, mas em modo ficção. E não é um trabalho preguiçoso dos responsáveis da série, antes pelo contrário: é um esforço de recriar uma imagem de herói trágico bem conseguida em quase todos os momentos (as expressões na cara de Gabriel Leone ajudam muito).
Sobre rodas, seja nos karts, na Fórmula Ford ou na Fórmula 1 (até quando Leone está sentado na praia a recriar na sua cabeça uma corrida) é tudo aquilo que se quer. Os excertos de corridas mostram-se como as as estivéssemos a ver no presente, com uma fundamental abstração do conhecimento do final desta história. Torce-se por Senna, delira-se com Senna, alimenta-se a ideia de que Senna fazia todos os outros parecerem aborrecidos. A ideia de de ver “a corrida como um túnel” torna-se então numa coisa primária, é Senna/Leone a explicar-nos o que acabámos de ver, que não foi a ambição que provocou um erro (Senna eventualmente tem um acidente que o coloca fora da corrida), mas esta constante ideia de que os limites não existem e que, em simultâneo, é muito bonito quando os quebramos na nossa cabeça: tudo se torna instinto.
[o trailer de “Senna”:]
A ideia de underdog é sempre cara na Fórmula 1 (será que tal coisa pode existir num desporto de milhões?), mas o Senna do documentário de Kapadia e este Senna da minissérie é essa figura. É um estereótipo que facilita a construção de uma narrativa. Como espectadores, alinhamos facilmente na narrativa. Estamos felizes assim, mas da mesma forma que saímos do Mónaco com um sorriso na cara, tudo esmorece nos entretantos, porque quando Senna está fora de um carro é uma história menos interessante. Sobretudo quando a ideia do túnel é reforçada noutro diálogo entre corridas, a repetição retira-lhe encanto, Senna desvenda o quão desinteressante consegue ser enquanto drama. A série torna-se preguiçosa, explorando todas as bengalas e mais algumas do facilitismo narrativo.
Exemplos? É preciso fazer um esforço para não nos rirmos de cada vez que Senna cruza olhares com alguém por quem tem um interesse sexual. É o esplendor da escrita arrastada. Os pontinhos da vida pessoal que surgem para se irem ligando com a carreira e a cronologia da vida do piloto são genéricos, contados de forma superficial e raramente substanciais para o resto. Um bom exemplo é o primeiro casamento, que tenta ter um lugar no pesar das decisões de Ayrton Senna no primeiro episódio. Contudo, no final do terceiro, quando Leone fala, após ter vencido o seu primeiro campeonato, dos “sacrifícios”, a imagem desse primeiro casamento não existe. Aliás, nem se percebe bem do que fala o protagonista e por uma simples razão: o que se passa nas corridas é tão, tão intenso, que o resto pouco importa.