O país tem um governo, mas o governo não tem um rumo. A votação na especialidade do Orçamento do Estado desfez as últimas ilusões. Os grupos parlamentares combinaram-se da maneira mais variada, para votarem em todos os sentidos. O caleidoscópio parlamentar fez desaparecer quase todas as referências que tornam a política compreensível, desde a dicotomia esquerda-direita às “linhas vermelhas”. Ficaram apenas alguns azedumes, como o manifestado por Hugo Soares contra André Ventura, que chegam para fazer notícia, mas não para sinalizar um caminho. Se o Orçamento do Estado define a governação, esta é a governação da Torre de Babel.
O momento escolhido pelos políticos portugueses para perderem a cabeça não podia ser pior. Estamos habituados a que os polícias sinaleiros da UE compensem a nossa desorientação. Mas eis que a mesma UE vacila no pódio, sacudida pelo arrastamento da guerra na Ucrânia e pela crise financeira e económica dos países directores, a França e a Alemanha. Convinha-nos alguma estabilidade própria. Não a temos.
Como começou isto? Com Luís Montenegro a pretender fazer um governo do “centro”, porque, segundo a sabedoria oficial do regime, “as eleições ganham-se ao centro”. Acontece que o “centro”, em política, não é um ponto fixo: é o ponto que resulta dos debates e dos acontecimentos. É, por isso, móvel. Umas vezes está mais à esquerda, como em 1975, quando o estatismo quase não teve críticos, e outras vezes mais à direita, como em 1995, quando todos privatizavam. Após 29 anos de uma longa noite socialista, Montenegro convenceu-se de que o “centro” estava destinado a ficar à esquerda. Era o que murmuravam os sábios: o “país é de esquerda”. Montenegro não reparou que os portugueses, a 10 de Março, elegeram a maior maioria de direita de sempre. Preferiu ignorá-la, e colocar-se na dependência do PS. Ao fazer isso, não pôs o seu governo ao centro, mas à esquerda do centro. Eis o princípio da confusão: um governo que existe por causa de uma maioria de direita, mas que quer depender de acordos com a esquerda.
Como vai isto acabar? Já se começa a ver. Após 29 anos de expansão do Estado e de um contestado ajustamento em 2011-2015, a direcção do PSD passou a acreditar que o eleitorado detesta reformas. Mais: a indulgência monetária europeia e a “habilidade” de António Costa com impostos altos e cativações convenceram Montenegro e os seus colegas de que as reformas eram supérfluas. As “reformas só servem para perder eleições”, concluíam os sábios. Mais uma vez, não viram o que se estava a passar? Não deram pela impaciência geral com a degradação crescente dos serviços públicos? A verdadeira herança socialista não consiste no excedente orçamental, mas nos alunos sem aulas e nas ambulâncias que não aparecem. Iniciar reformas não suprimiria as dificuldades instantaneamente, mas teria dois efeitos: demonstrar que o governo decidira tratar os problemas de modo sistemático, e não com remendos, e que nada tinha a ver com a governação anterior. Sim, há momentos em que as reformas podem ser um meio de ganhar eleições. Mas reformas só se fazem à direita, e o governo não deseja reconhecer a maioria na Assembleia da República. Corre assim o risco de herdar as responsabilidades e carregar a cruz dos governos anteriores, como uma espécie de triste Cireneu do poder socialista. Eis o fim provável desta confusão.
Na comunicação de quarta-feira sobre segurança, Montenegro e seus colegas foram capazes de afrontar a opinião televisiva. Mas em geral, estão presos ao pensamento morto que ainda passa por sabedoria entre nós. Uma infelicidade. Porque vivem num tempo em que, como Danton proclamou, só audácia, audácia e mais audácia os poderia salvar.