Só tive o privilégio de o conhecer pessoalmente em 2005. Nesse ano, Soares decide, com o apoio da direção nacional do PS, candidatar-se pela terceira vez a Presidente da República, aos 80 anos, poucos meses após ter dito ‘Basta!‘ à política. Era impossível para Mário Soares dizer que ‘não’ ao seu partido e ao seu país”
Pedro Nuno Santos já disse que não vai pôr mais nomes na fogueira das presidenciais e parece mais apostado em esfriar esse debate — que pode tornar-se um problema no partido que lidera —, ainda que tenha sido o socialista a dizer, numa entrevista à CNN, que as referências que o PS tinha para as presidenciais eram Mário Soares e Jorge Sampaio. Na sessão solene que assinalou os cem anos do fundador do partido, Pedro Nuno falou sobretudo da terceira tentativa de lá chegar, em 2006, mesmo depois de dizer “basta” à política, no jantar dos seus 80 anos. Um elogio à disponibilidade total de Soares para o partido, mesmo perante todas as adversidades — e agora, no caminho para o Palácio de Belém, que não ocupa há 20 anos, o PS enfrentará muitas. Nas galerias do hemiciclo estava precisamente Mário Centeno, um dos nomes da área socialista de que se fala e convidado para a sessão solene como governador do Banco de Portugal. Pedro Nuno Santos nunca confessou preferências, mas deixou nesta sessão uma qualidade que aprecia: a disponibilidade para — mesmo perante as dificuldades e baixas probabilidades de vitória — enfrentar a luta. “Já tinha sido tudo. Não precisava daquele último combate eleitoral para nada e o mais provável era não o vencer. Mas entendeu que tinha esse dever e foi candidato uma vez mais”, detalhou Pedro Nuno sobre Soares. Em 2006, o partido apoiou oficialmente Soares, mas Manuel Alegre também avançou, levou eleitores socialistas para o seu lado e ficou mesmo em segundo lugar. Quase 20 anos depois, Pedro Nuno pode vir enfrentar uma divisão como aquela que aconteceu durante essa campanha e que teve um resultado desastroso, entregando a Presidência por dez anos a Aníbal Cavaco Silva.
A derrota era provável, mas ninguém esperava um resultado tão baixo.
Estávamos todos acabrunhados e a carpir mágoas. Todos menos um. O Dr. Soares estava animado, positivo e só falava do futuro. A sua preocupação era animar-nos e que nos focássemos no futuro e nas lutas seguintes“
Continuou sobre a memória dessa última campanha de Soares, lembrando o dia seguinte à pesada derrota (Soares, apoiado pelo PS, teve 14% ) e preferindo focar-se no otimismo do candidato derrotado. O próprio líder do PS já enfrentou uma derrota eleitoral para a direita, nas últimas legislativas, depois teve uma vitória nas europeias e, neste momento, decidiu evitar uma crise política e não provocar eleições antecipadas — o que foi lido como falta de certeza numa vitória eleitoral frente a Montenegro nesta fase. Uma coisa é certa: entre os seus mais próximos — e até entre os seus críticos internos — essa capacidade de Pedro Nuno para resistir a derrotas vai sendo anotada, como que dizendo que o socialista pode não ficar apenas para umas segundas legislativas, mas ainda concorrer a umas terceiras eleições. O exemplo de Soares, que concorreu três vezes a Belém saindo com um resultado pífio nas últimas, deixou-lhe, de resto, algumas lições: “Só é derrotado quem desiste de lutar”.
A vida política de Soares vale como um todo. E, para a avaliar, não podemos escolher o período que mais nos convém ou mais nos agrada, de acordo com a conjuntura do momento ou a posição que queremos defender”
Na sessão evocativa do centenário de Soares, o líder do PS foi o último a falar. Quando Pedro Nuno se dirigiu ao púlpito já tinha ouvido as intervenções das restantes bancadas — onde tinham apontado as “luzes” e “sombras” do fundador do PS, conforme as interpretações do legado do socialista. Mas Pedro Nuno apareceu disposto a contrariar aqueles que procuram distinguir “o ‘Soares moderado’ do ‘Soares radical’. A referência, mais do que atingir as outras bancadas, pareceu apontada para dentro do seu próprio partido, onde o nome do fundador tantas vezes é evocado, sobretudo pela ala mais moderada, para lembrar a luta que Soares teve contra os comunistas durante o PREC. Aliás, Pedro Nuno apontou mesmo aos que procuram “depurar o ‘verdadeiro Soares’, distinguir e separar as duas personagens, a primeira na primavera da vida, a outra já octogenária: o “Soares que fez a barragem ao comunismo e que foi capaz de fazer pontes com a direita” e o “Soares defensor da abertura do PS à esquerda”. Ou ainda separar o “‘verdadeiro Soares, um defensor incondicional do projeto europeu’ do outro Soares, um ‘crítico de uma visão neoliberal da Europa’”. Para Pedro Nuno Santos, este depuração não faz sentido. “Não há contradição em Soares. Esteve sempre do lado certo das lutas em que tomou parte. O mundo mudou, nestas décadas, muito mais do que Mário Soares. As inflexões no seu posicionamento resultam mais dos efeitos do pêndulo da História do que de incoerências no seu pensamento.”
Foi o principal vencedor civil e político do 25 de Novembro, nunca hesitou sobre as datas mais importantes da Revolução”
Um dos temas mais recentes da vida parlamentar foi a comemoração pela primeira vez na Assembleia da República do 25 de Novembro. Depois de ouvir o Chega colocar aí o maior relevo da ação política de Soares, Pedro Nuno Santos não deixou de citar o fundador do partido sobre as “cinco datas marcantes da Revolução”. Da longa entrevista que Mário Soares deu a Maria João Avillez, Pedro Nuno tirou precisamente essa parte em que o fundador do partido enumera por ordem de importância: “O próprio dia 25 de abril; o dia 1 de Maio, com a ratificação popular da Revolução; as eleições para a Assembleia Constituinte, que legitimaram nas urnas, em 25 de Abril de 1975, o processo político iniciado um ano antes; o dia 2 de Abril de 76, com a aprovação da Constituição. A quinta data marcante teve a ver com as primeiras eleições legislativas, em 25 de Abril de 1976.” O 25 de Novembro não estava lá. Um recado do líder socialista, que volta a distanciar o PS da direita e a aproximá-lo mais dos partidos da esquerda, que nessa sessão firmaram posições contra a comemoração solene da data.
Em tempos de perplexidade, Soares esteve ainda do lado certo na crítica à hegemonia do neoliberalismo e à chamada “terceira-via”. Em 2004, no Diálogo de Gerações, disse a Sérgio Sousa Pinto: ‘A terceira via de Blair – em que nunca acreditei, permita-me que o sublinhe – está completamente desacreditada pelos factos’.”
Era um dos ódios de estimação de Soares: Tony Blair, ex-líder do Partido Trabalhista britânico e criador da chamada Terceira Via do centro-esquerda — que foi uma tentativa de renovar esse espaço político conciliar uma visão capitalista de mercado com uma política social progressista. Soares chegou a dizer, numa intervenção pública em 2011, que sempre achou Blair “um vigarista”. “Só pensa em ganhar dinheiro”, acrescentou então. E agora Pedro Nuno recuperou essa contenda recorrendo a Sérgio Sousa Pinto, uma das principais figuras da ala mais moderada do partido e que, por ter convivido de perto com Soares, é muitas vezes procurado para ser uma espécie de intérprete do pensamento do fundador. Uma referência curiosa sobre uma figura que se opôs abertamente ao possível chumbo orçamental do PS, que a esse propósito se travou de razões com Pedro Nuno Santos e que foi sempre um feroz crítico da ‘geringonça’, de que Pedro Nuno Santos foi um pivô importante.
Mário Soares esteve do lado certo, por fim, na procura de unir a Esquerda contra uma Direita radicalizada. Para isso promoveu, em 2013, dois encontros na Aula Magna que juntaram PS, PCP, Bloco de Esquerda, CGTP e UGT contra a austeridade e pelo cumprimento da Constituição. Dois anos antes da Esquerda se unir, de facto, para destroikizar o país, o que viria a acontecer em 2015″
Pedro Nuno continuou a procurar em Soares as justificações para o seu alinhamento dentro do PS e voltou a escolher a dedo outro momento. Foi até 2013, aos encontros das esquerdas na Aula Magna que o fundador do PS promoveu e que juntaram não só os partidos de esquerda com representação parlamentar como a duas maiores centrais sindicais. Colocou mesmo esses momentos como embriões da “geringonça”, ao sublinhar o objetivo comum que esses partidos tinham em plena intervenção da troika em Portugar: fazer recuar as medidas implementadas, às vezes mesmo contra a interpretação do Tribunal Constitucional. À sua frente, na bancada onde se senta o Governo no Parlamento, estava Luís Montenegro, que era então líder parlamentar de Pedro Passos Coelho.
No mesmo ano [2009], Mário Soares afirmava ainda que, na Europa, os socialistas – e cito – ‘têm de compreender que, no atual momento, os seus adversários são os conservadores e a direita; não a Esquerda, mesmo a radical”
É impossível ouvir esta intervenção de Pedro Nuno Santos sem olhar para este primeiro ano à frente do partido e como houve nela uma tentativa de justificar muitos dos caminhos que tomou e que defende para o futuro. Pedro Nuno sempre foi colocado numa ala mais à esquerda do partido, foi sempre um dos maiores defensores da ‘geringonça’ e nunca escondeu o desejo de a reeditar. O que lhe provoca tensões internas, naturalmente. Conduziu o último processo orçamental com grande hesitação, chegando à abstenção muito a contra-gosto e a justificando-a com argumentos que podiam ter sido usados logo em março, na noite eleitoral, numa viagem do “praticamente impossível” à abstenção quase violenta — chegando mesmo a aceitar a redução do IRC, tantas vezes anunciada como uma linha vermelha. Mas a sua linha é outra e aproveitou citações de Soares para se reposicionar. Primeiro, lembrou o que Mário Soares escreveu ainda em 2009, “no meio da maior recessão que a economia mundial conheceu em quase 100 anos”: ‘Com o descrédito profundo do neoliberalismo, só há um caminho exequível e experimentado: o socialismo democrático, a social-democracia, o trabalhismo, mas a sério. Isto é: voltando aos antigos valores’”. Nada de terceiras vias e de reinvenção da social-democracia, mas o regresso às origens, onde o PS só pode confiar nos partidos que estão à sua esquerda, “mesmo a esquerda radical”, como dizia Soares. E é esse legado do antigo líder que Pedro Nuno parece apostado em “honrar”.