Os deputados da comissão parlamentar de inquérito à gestão da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) têm uma lista com cerca de 300 pedidos de documentação e são vários os partidos que requisitaram registo ou cópia de comunicações, incluindo emails e outras mensagens eletrónicas, de várias personalidades ligadas à instituição.
Considerando que podiam estar em causa os direitos constitucionais de sigilo de correspondência e comunicações privadas, o presidente da comissão pediu um parecer jurídico sobre as implicações legais destes pedidos. O documento elaborado pelo gabinete do Presidente da Assembleia da República (PAR) considera o parecer já emitido a propósito da comissão de inquérito ao tratamento recebido pelas gémeas, o qual limitou os pedidos feitos pelo Chega para a entrega de todas as comunicações, nomeadamente cartas, mensagens escritas por meio de telemóvel ou via internet — WhatsApp, Messenger, Telegram — e emails relacionados com o processo de tratamento das crianças.
Tendo por base um parecer do conselho consultivo da Procuradoria Geral de República, considerou que tal “requisição era ilegítima, infringia norma constitucional e não respeitava os direitos, liberdades e garantias nem o equilíbrio dos poderes constitucionais entre os diversos órgãos de soberania”. O envolvimento das comunicações pessoais do Presidente da República ainda reforçou mais esta recusa.
Caso gémeas. Aguiar-Branco recusa pedido do Chega sobre comunicações de Presidente da República
Apesar de considerar que os pedidos de comunicações relacionados com a gestão da Santa Casa não suscitam o mesmo tipo de preocupações, por serem no essencial de natureza administrativa, o parecer emitido pelo PAR, a que o Observador teve acesso, introduz, ainda assim, alguns limites no acesso a estas interações. E defende que o cumprimento da entrega desses dados deve “ficar a cargo de cada destinatário individual, a quem a informação diz respeito, sem pesquisas nem apreensões alheias ao consentimento individual”.
Em causa estão os requerimentos apresentados sobretudo pelo Chega e pela Iniciativa Liberal. O primeiro pediu o registo de todas as comunicações institucionais no âmbito do objeto da comissão, especificando que tal iria incluir cartas, mensagens escritas em telemóvel ou internet sobre temas como a internacionalização, as novas áreas de negócio e o jogo, compra de equipamentos e recursos humanos, especificando emails que terão sido trocados entre membros da mesa da Santa Casa e a ex-ministra Ana Mendes Godinho que foram referidos na audição do ex-administrador na área internacional, Francisco Pessoa e Costa.
A IL quer, por sua vez, o acesso a todas as comunicações, especificando despachos, requerimentos, cartas, correio eletrónico, notas de agenda e outras remetidas pela mesa da Santa Casa à tutela e a entidades externas, bem como as trocas entre chefias internas num período entre 2011 e 2024.
Já o PSD pediu estudos, análises financeiras e de negócio, pareceres e correspondência (incluindo emails) que permitam apreciar os critérios de oportunidade das decisões e as posições assumidas pelos gabinetes dos vários presidentes da mesa e pontos de situação feitos ao ministério da tutela, a Segurança Social.
O parecer considera que estes pedidos incidem sobretudo sobre comunicações de natureza institucional e que os deputados podem pedir as informações e documentos que considerem úteis à realização do inquérito, desde que fundamentem. Defende por isso que os pedidos para documentos não inteiramente públicos devem ser justificados pelos deputados “segundo critérios de adequação, estrita necessidade e proporcionalidade, não bastando invocar, muito menos dar por presumida, a simples utilidade para o inquérito parlamentar.” O que passa por especificar informações de documentos “sem recurso a fórmulas vagas, nem ambíguas, tanto mais que cópia de cartas, correio eletrónico, mensagens escritas podem bulir com a proteção de dados pessoais ou com a reserva da intimidade da vida privada e familiar, ainda que se trate de documentos administrativos”.
Esta necessidade pode limitar os pedidos, já que a informação destes elementos traz pistas sobre documentos ou interações concretas que os deputados não podem se não souberem que elas existiram.
Por outro lado, e apesar destes documentos serem administrativos, sendo nominativos (indicando nomes e informação pessoal), podem conter dados de saúde ou outros dados sensíveis, notas pessoais, esboços, apontamentos, comunicações eletrónicas pessoais. Por isso deve ser acautelada a legitimidade de recusa. Ou seja, para obter este tipo de documentos eletrónicos ou digitais, não pode ser adotada a injunção prevista na lei do cibercrime, nem aplicada sanção por desobediência e obrigar a quem tiver esses dados a entregá-los. Fica assim salvaguardado o “caráter legítimo da recusa se tais documentos contiverem dados pessoais ou expuserem a vida privada e familiar, sem que o titular dos correspondentes direitos o consinta”.
Os deputados da comissão parlamentar de inquérito (CPI) já identificaram mais de 100 personalidades que podem vir a chamar — sobretudo antigos diretores de departamentos e titulares de órgãos sociais de empresas com ligações à SCML — o leque de comunicações potencial é muito vasto. As audições presenciais só vão começar em janeiro, tendo o prazo sido suspenso enquanto decorre o período legal para o provedor entre 2011 e 2017, Pedro Santana Lopes, responder por escrito aos deputados.
Inquérito à Santa Casa. Respostas por escrito de Santana Lopes atiram primeiras audições para o próximo ano