Incomodam-me um bocadinho as pessoas que, sob qualquer pretexto, dizem e repetem, com toda a vaidade, que são leitoras compulsivas. Ou que devoram livros. Não porque elas os leiam, claro. Ou, muito menos, porque façam da leitura um exercício que lhes seja indispensável. Mas porque nem sempre se fica com a sensação que a quantidade da suas leituras pareça vir acompanhada com a forma como as degustam. A ponto de me perguntar, um ror de vezes, o que terão feito elas a cada livro que leram. Porque parecem não ter um afã tão grande assim pela escuta ou pela palavra. Nem um amor perscrutável pela dúvida e pela pergunta.
Na verdade, aquilo que incomoda nessas pessoas não serão tanto as suas leituras. Mas a forma como usam esse anúncio como se nos quisessem rebaixar com a sua flamejante “erudição”. Ao pé da qual nos sentimos, roubando-o por breves momentos a Álvaro de Campos, nas vizinhança do Esteves: sem metafísica!
Eu faço! Eu estive! Eu tenho! Há um narcisismo que pulula por aí duma forma que se impõe, devagarinho. Mas que é insistente e pegajosa. Que nos encolhe quando o sentimos. A ponto de o acarinharmos só para que ele não se assanhe quando, irreflectidamente, o desmascaramos.
A vaidade não é uma descoberta recente. Claro! A única particularidade que ela parece ter ganho é que, entretanto, se democratizou. E, como o trânsito em horas de ponta, trespassa as redes sociais de um lado para o outro. Seja quando se exibe tudo: um filho; um feito; ou o que que seja que vá do mais banal ao íntimo do mais íntimo. Ou se manifesta quando se influencia. Quando se expõe, como uma humildade que se cultiva, a forma como alguém se minimiza ou faz, em esforço e falsamente, por rir de si. Quando se posta o sarcasmo e ele se veste como se fosse ironia ou humor. Quando se fotografa uma sopa ou um concerto, como se mais importante do que degustar ou aprender fosse trazer elementos de prova a mais um “eu estive lá!”. Quando se adoptam causas, socialmente correctas — muitas delas, contra a violência — e os comentários surgem com rancor e com ódio em relação a quem não as subscreve sem observações ou sem crítica. Ou quando se cancelam pessoas e se faz de qualquer contraditório um delito de opinião. Tudo a par das grandes causas. De momentos comoventes. Ou de pessoas que nos arrebatam e nos inspiram.
O narcisismo não é uma invenção das redes sociais. Sempre existiu. Mas, entretanto, tornou-se viral.
E não, não é o ódio que parece ganhar escala e que cresce e cresce no nosso tempo. É o narcisismo. Sempre que se desmascara. E põe a hostilidade, a malvadez, a arrogância e o ódio a descoberto sempre que alguém o lê para além daquilo que ele mostra.
O narcisismo alimenta-se do individualismo. E toma a diversidade humana como se ela devesse ser feita de almas-gémeas. O narcisismo nidifica na notoriedade. Na necessidade de crescer muito depressa, com muito sucesso, muito dinheiro e muito bem. O narcisismo gosta de nós distraídos e desatentos. Na verdade, ele não gosta daqueles que se lêem. E é por isso que nos afasta da pergunta. E da culpa. E faz da tristeza uma fraqueza. Achincalha o que se sente. E exige o controle. À margem do medo, do erro, ou do fracasso.
Mas o narcisismo é adversário da empatia. Quanto mais o alimentamos menos nos colocamos no lugar do outro. E mais voyeurs ou comiserativos nos tornamos. O narcisismo é adversário da bondade. E é um oponente da simpatia, da amabilidade e da hospitalidade. O narcisismo dá-se mal com a boa educação. E é da oposição em relação à gratidão, à culpabilidade, ao encanto e à beleza. O narcisismo fica nas traseiras da perfeição. Dai que o incomode tudo o que dê luz à alma humana. Seja a graça da espontaneidade. Ou a coragem com que se vai da simplicidade à transparência.
O narcisismo gera a indiferença. Azeda. Corrói. E carcome. E mata; devagarinho! A esperança e a fé. A capacidade de amar e de sonhar. O desejo. As lágrimas. E o riso.
Se há uma epidemia do nosso tempo o narcisismo será a maior de todas elas. É insidiosa. Separa e agride. E parece que ao pé dela nunca podemos ser como um livro que permanece por escrever depois de lido. Ou ter a cabeça na Lua e os pés na Terra a que a sabedoria nos faz chegar sempre que, a páginas tantas, nos lemos quando lemos. Sobretudo a seguir, às páginas em branco. Às entrelinhas. Às meias-palavras. E às últimas folhas.
Sempre que falha o amor próprio cresce o narcisismo.