Mahin, a protagonista de O Meu Bolo Favorito, tem 70 anos, é viúva há 30, as duas filhas vivem no estrangeiro e está sozinha em casa há muito tempo. Todos os dias, quando acorda, já tarde (e às vezes com o telefonema de uma amiga que quer saber como ela está, ou quer uma ouvinte para as suas queixas de saúde), porque dorme mal de noite, diz: “Estou viva”. Mahin vê cada vez menos as amigas. Os seus almoços passaram de semanais para anuais, e durante os mesmos, uma delas acaba inevitavelmente por açambarcar a conversa com as suas maleitas (imaginárias ou não). Tirando o ocasional telefonema de uma das filhas, que mal dá para falar com ela e com o neto miúdo e arisco, não resta mais nada a Mahin. Ela sente-se profunda e dolorosamente só.
Por isso, e depois do almoço anual com as amigas em sua casa, em que se falou de maridos, de homens e da companhia e do jeito que fazem, apesar de todos os seus defeitos, e de segundas oportunidades, Mahin decide, finalmente, combater a sua solidão. No restaurante de reformados que frequenta de vez em quando, repara em Faramarz, um taxista que lá almoça. Atreve-se a ir falar com ele quando acaba o turno, e a convidá-lo para sua casa. Faramarz, um antigo militar e divorciado, aceita, e Mahin até lhe faz o seu bolo favorito, depois de falarem, dançarem e beberem um vinho que ela guardava há muitos anos para uma ocasião como esta, e que não acreditava que pudesse suceder: voltar a ter alegria de viver, e partilhada um homem tão solitário como ela.
[Veja o “trailer” de “O Meu Bolo Favorito”:]
Assim contado, O Meu Bolo Favorito, de MaryamMoghadam e BehtashSanaeeha, seria só mais um filme sobre a solidão dos velhos nas grandes cidades das sociedades modernas. Só que O Meu Bolo favorito passa-se no Irão, onde vigora um regime teocrático. E Mahin (Lili Farhadpour, magnífica de naturalidade e capacidade de criar empatia para a personagem com a sua composição), que vive em Teerão, está a transgredir vários preceitos islâmicos ao levar um homem para uma casa onde vive sozinha, ao conversar, ouvir música, dançar e beber com ele, e ao sugerir-lhe que vão mais longe nas intimidades. E como tem uma vizinha bisbilhoteira, arrisca-se a ser denunciada à Polícia da Moralidade, das mãos da qual, ainda há poucos dias, conseguiu tirar uma rapariga que ia presa por mostrar cabelo a mais sob o lenço mal posto.
[Veja uma sequência do filme:]
Lançando mão daquele realismo colado ao quotidiano das pessoas comuns e discreta e cuidadosamente detalhado, que é apanágio do cinema iraniano, sem derivas melodramáticas, e mesmo apesar de um final previsível (no desenlace, que não nos detalhes tétricos que se seguem), Moghadam e Sanaeeha mostram como a solidão de Mahin é cruelmente agravada pela severidade intolerante e repressiva do regime iraniano. E por extensão, abarcam a situação dos direitos das mulheres no país, deixando que a história de Mahin flua naturalmente e sem esforço do particular para o geral. (O filme, em parte rodado em segredo, coincidiu por puro acaso com o eclodir do movimento Woman, Life, Freedom no Irão e toda a agitação social em seu redor).
[Veja excertos da conferência de imprensa do filme no Festival de Berlim:]
Em 2023, as autoridades impediram o casal de realizadores de irem a Paris para fazerem a pós-produção, e apreenderam imagens e material relativo à fita. Os dois principais intérpretes de O Meu Bolo Favorito, Lili Farhadpour e Esmail Mehrabi, estiveram presentes no Festival de Berlim deste ano, onde o filme competiu. Os realizadores, que já em 2020 tinham encolerizado os poderes iranianos com a sua fita anterior, O Perdão, não foram autorizados a sair do Irão. Estão nesta altura proibidos de deixar o país e a braços com um processo judicial, acusados de propaganda contra o regime, violação da lei islâmica e propaganda de prostituição e libertinagem.