Como é que se adapta para televisão uma das mais épicas sagas familiares da literatura? Não se adapta. Ponto final. Pelo menos era isso que defendia Gabriel García Márquez sempre que alguém queria comprar os direitos de Cem Anos de Solidão para transformar o livro em série ou filme.
Porém, com a morte do Prémio Nobel da Literatura em 2014, os filhos tomaram conta do legado e deram luz verde a um projeto da Netflix, do qual são agora produtores executivos. Apesar do medo do autor de ver a sua obra afastada da América Latina e de todas as suas características culturais e geracionais, a adaptação funciona como uma homenagem, preserva todas as palavras fulcrais do texto original, tem uma fotografia exímia e consegue quase sempre fazer justiça à história.
Dividindo-se em duas partes, estão já disponíveis na plataforma de streaming os oito primeiros episódios de Cem Anos de Solidão. A segunda parte está guardada para o próximo ano, ainda sem data de estreia anunciada.
A narrativa passa-se praticamente toda na mesma localidade, Macondo, acompanhando várias gerações da mesma família, os Buendía. Nascidos longe dali, José Arcadio Buendía (Marco González) e Úrsula Iguarán (Susana Morales) são primos, mas apaixonam-se e decidem casar. A união não é bem vista e a mãe de Úrsula prevê que qualquer filho que venham a ter nasça com um rabo de porco — essa maldição não há-de confirmar-se mas as escolhas humanas e as fatalidades irão ditar uma vida atribulada para a descendência. A juntar a isto está o facto de José Arcadio ser atormentado pelo fantasma de um homem que matou por causa de um comentário numa luta de galos. Incompreendidos pela família e vistos de lado pela comunidade, Úrsula e José Arcadio pegam nas trouxas e põem-se a caminho em busca de uma nova terra. Com eles levam amigos e criam uma povoação onde a igualdade impera de tal forma que “todas as casas estão construídas de forma a receber a mesma luz do sol”.
[o trailer de “Cem Anos de Solidão”:]
A utopia depressa é posta à prova, claro, num local onde coisas anormais convivem com as banalidades do dia a dia. Os padres levitam, os mortos escolhem não estar mortos, os ciganos aparecem para trazer alquimia, magnetismo e gelo. O realismo mágico é uma das características principais do livro e encaixa-se com naturalidade na adaptação da Netflix.
Além disso, o drama junta ideais políticos, rivalidades entre irmãos, filhos ilegítimos, violação, automutilação, incesto, doenças mentais e traições, tudo no seio de um grupo onde todos se conhecem. As paisagens, as cores e as tradições da Colômbia estão aqui vincadas de forma inequívoca. A fotografia tem um papel exemplar, os cenários com cores vivas parecem quadros acabados de pintar, as casas convidam-nos a entrar e sentar-nos à mesa com estas famílias.
Porém, os episódios são longos e isso nem sempre abona a favor do ritmo da narrativa. A câmara demora-se nas cenas, o tempo arrasta-se e não faz avançar a história de forma a manter o espectador sempre com a atenção a 100%, sobretudo nos primeiros capítulos. Também os últimos, quando se focam na Guerra Civil, se atropelam, desviando-se do fio condutor que se tinha tornado consistente. Quem não leu livro terá alguma dificuldade em entender como é que os elementos extraordinários — o saco de ossos que Rebeca trouxe com a ela e se arrasta com vida própria pela casa ou a personagem que vive amarrada a um castanheiro — fazem sentido aqui. Mas fazem e são deixadas inúmeras vezes no fundo do plano, desfocados, só para sabermos que ainda ali estão.
Há cenas que podiam ser reduzidas a um terço do tempo ou simplesmente não existir porque só mantêm uma lentidão desnecessária que pode levar à desistência (mais uma vez, para quem não leu o livro, será difícil perceber algumas escolhas). Quando a história se foca no realismo mágico, não sabe muitas vezes onde está o limite, exagera e isso pode colocar em perigo a credibilidade do resto da narrativa.