Desde que a farmacêutica Octapharma rescindiu o contrato de prestação de serviços com José Sócrates, em novembro de 2014, pouco depois da sua detenção no âmbito dos autos da Operação Marquês, só é conhecido outro trabalho ao ex-primeiro-ministro. Trata-se de um contrato de consultadoria que terá feito em 2020 com o grupo do empresário Adélio Machado, ex-piloto de automóveis e empresário ligado a empresas de limpezas, imobiliário e construção, sediadas em Paris, que estavam em 2023 em processo de insolvência.
Tal prestação de serviços terá valido um rendimento mensal de 12.500 euros durante o ano de 2020 e remunerava o trabalho de José Sócrates como presidente do Conselho Consultivo Estratégico da ETZ Global Telecom, com foco nos mercados da América Latina e dos países lusófonos. Os 12.500 euros mensais, o mesmo valor que o Grupo Octapharma pagava a Sócrates por serviços idênticos, foi pago pela empresa a ETZ Global Telecom (com sede no Luxemburgo) e pela AMATECH Consulting (com sede em Espanha), segundo uma investigação da SIC emitida em janeiro de 2023.
Entretanto, entre junho de 2019 e junho de 2023, o ex-primeiro-ministro teve uma colaboração regular com a revista brasileira Carta Capital. Já desde junho de 2024, Sócrates passou a escrever como colunista no site ICL Notícias, desconhecendo-se, porém, se foi remunerado pelos artigos escritos, em ambos os casos.
Segundo o regime da subvenção vitalícia da Caixa Geral de Aposentações, “o exercício de atividade privada, incluindo de natureza liberal, remunerada com valor médio mensal igual ou superior a três vezes o indexante dos apoios sociais”, neste caso 1 527,78 euros, determina a redução do valor da subvenção mensal vitalícia na parte excedente àquele montante. Isto é, a lei impõe sempre limites à atividade privada a quem beneficia desta subvenção do Estado.
Por ter sido primeiro-ministro, o ex-governante é considerado pessoa politicamente exposta (PEP), o que significa que as instituições financeiras têm deveres especiais de comunicação, por causa do combate ao crime de branqueamento de capitais. A informação de que Sócrates estava a receber um valor muito acima do rendimento mensal da subvenção vitalícia levou a Caixa Geral de Depósitos a informar o Departamento Central de Investigação e Ação Penal. Contudo, a informação não levou à abertura de um inquérito criminal por a origem dos rendimentos ter sido considerada lícita.
Novas transferências avultadas de Sócrates levam Caixa Geral de Depósitos a alertar o Ministério Público
Em entrevista à SIC, em junho de 2022, José Sócrates revelou que já tinha voltado a receber a subvenção vitalícia como ex-político. Tendo em conta que esta subvenção não pode ser acumulada com trabalho no setor privado a partir de determinado montante, isso indicia que o ex-primeiro-ministro apenas terá como único rendimento a pensão como ex-político que é paga pela Caixa Geral de Aposentações.
Apesar de ter sido questionado pelo Observador, Sócrates recusou-se a esclarecer se assim é. Nessa entrevista à SIC em junho de 2022, o ex-primeiro-ministro esclareceu que era ele quem pagava os custos das viagens regulares ao Brasil, por exemplo. “Com certeza que sou eu que custeio todas estas despesas. Eu tenho trabalhado nestes últimos tempos para algumas empresas, mas também retomei a minha subvenção vitalícia que me tem permitido custear todas estas despesas”, disse.
Na altura, estava em causa a quebra das regras do Termo de Identidade e Residência, que obriga qualquer arguido a informar os autos de quando se ausenta do território nacional — o que levou o Juízo Criminal de Lisboa a reforçar as medidas de coação em junho de 2022 e a decretar a obrigação de Sócrates se apresentar quinzenalmente na GNR da Ericeira. Essa medida de coação expirou, entretanto.
O Tribunal Constitucional (TC) é o último patamar de recursos para arguidos e José Sócrates não tem hesitado em tentar, junto do Palácio Ratton, reverter decisões e travar o processo Operação Marquês.
No total, o ex-primeiro-ministro já apresentou 11 recursos e reclamações desde 2015. Destes, nove são relativos ao processo original (122/13.8TELSB) e dois sobre o processo que resultou da pronúncia da decisão instrutória do juiz Ivo Rosa a 9 de abril de 2021, no qual foi pronunciado por falsificação e branqueamento com o empresário e amigo Carlos Santos Silva (16017/21.9T8LSB).
Julgamento de Sócrates deve começar até junho — no máximo, setembro. Algo o pode ainda adiar?
Contudo, o saldo é inequívoco: um recurso aguarda decisão e os outros 10 redundaram em derrotas, que já custaram os tais 16.746,60 euros em taxas judiciais ao antigo governante. O resumo da dezena de decisões já conhecidas é simples: os juízes conselheiros do TC decidiram não tomar conhecimento dos argumentos invocados pelo ex-primeiro-ministro, consideraram não existir legitimidade ou fundamento para recorrer ou não declararam inconstitucionais normas que a sua defesa contestava.
Segundo os dados fornecidos pelo TC ao Observador, a litigância da defesa do principal arguido deste megaprocesso destaca-se claramente dos restantes arguidos. Por exemplo, Carlos Santos Silva recorreu ao TC no processo Marquês apenas por duas vezes, tantas como o antigo ministro socialista Armando Vara. O antigo chairman da PT Henrique Granadeiro e o ex-presidente do Banco Espírito Santo (BES), Ricardo Salgado, recorreram apenas uma vez neste caso (embora o antigo banqueiro tenha interposto recursos e reclamações noutros processos).
José Sócrates esteve 288 dias em prisão preventiva no início do processo Operação Marquês, desde que viu o juiz Carlos Alexandre confirmar a promoção do Ministério Público (MP) a 24 de novembro de 2014. Saiu da prisão de Évora no dia 4 de setembro de 2015 e passou para prisão domiciliária, que apenas terminou a 16 de outubro.
Foi enquanto estava numa cela de Évora que chegou a primeira fatura de custas do TC para pagar, com um acórdão de 12 de agosto de 2015 a declarar improcedente um recurso da defesa do ex-governante. Assinado por cinco conselheiros (João Cura Mariano, Ana Guerra Martins, Pedro Machete, Fernando Vaz Ventura e Joaquim de Sousa Ribeiro), o acórdão debruçava-se sobre um recurso no qual Sócrates reclamava várias nulidades nas rejeições da Relação de Lisboa sobre o despacho que lhe aplicou a prisão preventiva.
Sócrates fica em prisão preventiva, ao fim de 13 horas de interrogatório
No entanto, os magistrados não viram inconstitucionalidade na interpretação de que é “dispensável a audição pessoal do arguido, relativamente à proposta de aplicação da medida de prisão preventiva, quando ele tenha sido ouvido” em primeiro interrogatório judicial. Tal como entenderam também a constitucionalidade da interpretação de que a fundamentação da decisão do juiz sobre a aplicação de prisão preventiva “pode ser feita por remissão para a promoção” do MP e que a apreciação da prova “permite o recurso a presunções judiciais em processo penal”.
Era então apenas o primeiro de uma longa sucessão de recursos e reclamações da defesa do ex-primeiro-ministro no processo Marquês, mas o Palácio Ratton aplicou logo um dos valores mais elevados de custas judiciais que foram impostos a Sócrates: 2.550 euros — o que corresponde a um somatório de 25 unidades de conta processuais, com um valor unitário de 102 euros.
102 euros é o valor atual para o cálculo de cada unidade de conta cujo pagamento seja decretado por um tribunal.
O ano seguinte à detenção e ao rebentar do caso Marquês foi, claramente, o ano de maior litigância da defesa do antigo governante junto do TC. Além do acórdão referido antes, Sócrates procurou por mais três vezes encontrar soluções junto desta instância, mas sempre sem sucesso.
No espaço de 10 dias, duas decisões sumárias. A primeira chegou a 14 de outubro de 2015 (pouco antes de deixar de estar sujeito à obrigação de permanência na habitação), subscrita pelo conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro; a segunda veio no dia 23 de outubro, pela mão do conselheiro João Cura Mariano, atual presidente do Supremo Tribunal de Justiça.