No longo muro do tempo onde a história se grafita, aquele duro adeus desenhou-se com um orgulho que não desconhecia nem desprezava a melancolia. Há um século, no dia 12 de dezembro de 1925, o Presidente da República, Manuel Teixeira Gomes, deixava o Palácio de Belém e, após cinco dias passados apressadamente na sua casa da Gibalta, partia, a bordo do navio cargueiro Zeus, para um exílio sem remorso, sem recuo e sem regresso.
Começava então, mais uma vez, uma nova vida para este homem de 65 anos, cuja existência foi cadenciada por períodos muito diferentes, mas que aproveitaram, sem nenhuma concessão à distração ou ao desperdício, a sabedoria e a experiência uns dos outros.
Teixeira Gomes nunca se perdeu de vista no mundo, nem nunca perdeu o mundo de vista em si. Fez de cada um dos seus dias e de cada um dos seus passos um avanço para conquistar uma liberdade interior e exterior, alcançada perante si-mesmo e perante os outros, que o levou à escrita criadora, à contemplação da beleza, à acção enérgica e empenhada. Isto é, à literatura, às artes, à diplomacia, à política.
Este requintado esteta, refinado dândi e sofisticado sensualista (como no seu tempo se dizia) era dotado de uma sensibilidade desperta para tudo o que valesse a pena. Fez ele da vitalidade física uma condição da energia mental e do prazer de todos os sentidos uma experimentação laboratorial, fundamento da sua mais valiosa experiência humana. Novelista, contista, cronista, memorialista, dramaturgo, coleccionador, viajante, embaixador (na época, dizia-se ministro), Presidente da República, de tudo isso se tem escrito e falado com abundância.
Mas, antes disso tudo, foi, durante largo tempo, um negociante activo e próspero. O fruto que obteve do seu auspicioso negócio de frutos concedeu-lhe sucessivas e excelentes possibilidades para afirmação dessa liberdade pessoal que, nele, se juntava a uma atitude cívica e a um ideal republicano de dar aos outros as mesmas oportunidades que foi capaz de criar para si.
Do seu afortunado ofício de empresário, negociante e negociador, pouco se tem dito e, por isso, pouco se conhece. É desse tempo inicial e iniciático da vida do futuro escritor, aquele em que ganhou muito dinheiro, e o soube astutamente fazer render, que trata Gonçalo Couceiro, no seu livro, publicado recentemente, a que deu o título, ao mesmo tempo descritivo e inscritivo, de “Manuel Teixeira Gomes / A Arte de Negociar”.
Afirma o autor na Introdução, definindo o alcance do seu propósito: “Convictos de que foi a sua condição de homem de negócios que lhe permitiu uma vida “romanesca”, livre e criadora, procurámos saber mais sobre quem foi o comerciante e o exportador, actividade que o ocupa durante algumas décadas e que talvez por preconceito tem ficado um pouco por esmiuçar, considerada porventura pouco relevante em vista da espantosa produção literária ou do desempenho notável que teve na vida pública. Entendemos, no entanto, necessário e útil dar a conhecer mais sobre esta actividade, que foi afinal a base de sustentação da sua vida – os negócios. (…) Pela primeira vez, encontrámos documentos que bem atestam o modo de agir de um empresário moderno, muito atento à prevenção de riscos e à montagem de operações comerciais e logísticas, em terra ou no mar, que envolviam a sua actividade”.
A partir de uma investigação persistente, cuidada e arguta, que descobriu no seu caminho informações inéditas e encontrou documentos desconhecidos, é assim feita uma história minuciosa dos anos em que este algarvio prometido à glória soube, com uma viva inteligência prática, um senso agudo de organização e uma visão precursora, continuar, aumentar, consolidar e internacionalizar o negócio de frutos secos herdado do pai, obtendo os lucros que lhe permitiram a audaciosa interpretação ad libitum da partitura da vida livre que cultivava e o uso reiterado e rebelde da independência de que, com uma elegante insolência, quis sempre fazer demonstração e alarde.
Frequentando com mão diurna e nocturna, como citava, de Horácio, o velho Camilo Castelo Branco, papéis extensos e dispositivos digitais, recorrendo arduamente a arquivos não explorados para este fim, como o da Companhia de Seguros Fidelidade, de que Teixeira Gomes foi agente em Portimão, obteve aquilo que um investigador mais deseja: dados novos, factos ignorados, indicações precisas, pormenores integrados, hipóteses confirmadas, argumentos firmes e, sobretudo, um fio que conduz a história e lhe concede uma solidez que torna a narrativa coesa e coerente, consistente e consequente.
Com um currículo dedicado ao estudo da história de arte (é autor de uma tese académica, tornada depois livro, sobre a Igreja de São Paulo de Macau) e à defesa e preservação do património cultural (foi director do IGESPAR e da Direcção Regional de Cultura no Algarve), nesta obra recorre à sua comprovada perícia de investigador, ligando o conhecimento da importância do património pessoal de Teixeira Gomes como garante da segurança material da sua longa e dispendiosa vida ao reconhecimento da relevância da sua actividade comercial como património da região do Algarve e da economia local. Isso mesmo é notado por Helena Garrido, jornalista da área da economia, no elucidativo Prefácio que escreveu para esta edição.
Ao longo de quatro informados e documentados capítulos, vamos conhecendo a acção modernizadora que Teixeira Gomes induz no negócio recebido do pai, o seu esforço incansável, a sua imaginação comercial, que juntava a prudência e o arrojo, o seu talento para fazer relações, estabelecer laços e gerar confiança, o poder da sua ambição e a capacidade activa de a realizar.
Assistimos, em paralelo, ao nascimento, crescimento, auge e declínio do um negócio, o de frutos secos, que mudou a geografia física e humana do Algarve, o seu peso na economia nacional, a vida e os costumes dos seus habitantes e as relações da região com as outras regiões de Portugal, com a Europa e com o Mundo.
Página a página deste livro, vemos o seu protagonista actuar no palco cada vez mais amplo dos seus negócios, com sede em Portimão e escritório em Antuérpia, aperfeiçoando a sua arte de dar e receber, manter e conceder, forçar e reforçar, ligar e desligar, calcular e obter, prometer e persuadir. A essa arte de troca podemos, usando uma antiga e sempre nova palavra, chamar-lhe uma arte de negociar. O verbo “negociar” lembra-nos o que, desde o latim, sabemos: que negócio significa o contrário de ócio. Em Manuel Teixeira Gomes, era isso mesmo que significava. Para ele, negócio queria dizer labor, labuta, talento, tacto, destreza, perspicácia, lucidez. Mas era o negócio que lhe permitia o ócio! E, assim, a sua arte de negociar se mostrou inseparável da sua arte de viver.
Nesta obra, vemos que, ao desenvolver, valorizar, apurar e potenciar, incessantemente, a sua arte de negociar, com interlocutores nacionais e estrangeiros, tão diferentes e tão exigentes como as circunstâncias, as situações e os reptos em que agia, o futuro Presidente da República ficou na posse de uma notável aptidão que usou com eficácia nas épocas futuras da sua vida e em outros domínios da sua acção, privada e pública, como coleccionador, diplomara, político.
Além do mais, este “empresário de sucesso” (como diríamos hoje) praticava essa arte de negociar com um rigor deontológico e com um escrúpulo ético, esses, sim, verdadeiramente inegociáveis, que podiam fazer dele, embora este antigo seminarista se confessasse um “agnóstico nato”, um exímio exemplo dos comportamentos que o grande sociólogo alemão Max Weber considerava configurarem “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”.
Foi essa arte de negociar que lhe foi fundamental nos tempos adversos em que se tornou, logo no ano seguinte ao da proclamação da República, embaixador de Portugal junto da Corte de Sua Majestade Inglesa, em Londres, onde se encontravam exilados o soberano português deposto, o rei D. Manuel II, e os altos dignitários monárquicos destituídos das suas funções ou assustados com a mudança de regime.
Na capital do Império Britânico, teve de enfrentar uma permanente e agressiva conspiração contra ele, a que fez face com êxito, graças a uma habilidade diplomática e a uma distinção pessoal, conseguindo assim seduzir e convencer os seus adversários mais desconfiados e hostis, a começar pelo rei Jorge V.
Foi o reconhecimento desses seus méritos e talentos de negociador que levou à sua escolha, num momento muito perigoso, para Presidente da República. Este grande viajante usou todos os seus recursos de hábil e competente praticante da arte de negociar para tentar inverter o declínio e a marcha para o abismo a que o regime republicano era levado pela falta de clarividência e de vontade positiva dos seus chefes políticos, desastrosamente ocupados em intrigas galopantes, lutas pelos pequenos e grandes poderes, hostilidades e rivalidades pérfidas e constantes, filiações em facções irreconciliáveis, erros de percepção na avaliação do sentimento popular, instabilidade governativa crónica, gerando incapacidade administrativa e impossibilidade de corresponder aos anseios e expectativas das pessoas e das populações, substituição do idealismo inicial por um vulgar realismo sem grandeza e sem horizonte.
Foi o falhanço (o maior falhanço da sua vida de negociador!) nesta sua missão de conseguir, através de uma negociação esforçada que rapidamente se tornou frustrante, um compromisso capaz de unir os melhores republicanos para salvar a República, a que se juntou uma aviltante campanha de ataques, de insinuações, de calúnias e de difamação pessoal, que levou o autor de “ Agosto Azul” à demissão (ele disse enfaticamente: libertação) do cargo de Presidente da República, descrevendo, com acintosa eloquência, o tempo em que o exerceu como um triste tempo de “ cativeiro”.
A imagem que, de Manuel Teixeira Gomes, nos dá este livro tão singular como a gente sobre a qual ele um dia escreveu, com um estranho e imaginativo dom de observação, é, ao mesmo tempo, igual e diferente da que dele já tínhamos. Igual, porque não põe em causa nenhum dos grandes traços que desenhavam o seu retrato. Diferente, porque dá a esses traços um outro vigor, uma outra cor, uma outra perspectiva e um outro acabamento.
Obra de método e de minúcia, mas também de engenho e de novidade, que se lê com interesse (mesmo nas suas passagens mais densas) e aproveitamento, “Manuel Teixeira Gomes / A Arte de Negociar”, é, de ora em diante, uma fonte indispensável e preciosa para quem procure conhecer a vida do notável escritor e do desiludido político. Ou para quem dele intente fazer uma nova biografia.
Talvez, por tudo isto, haja, nesta obra, aquele tom indisfarçável de indiscreta satisfação pelo trabalho realizado, ao mesmo tempo que há um subtil gesto de inconclusão e um ágil movimento de abertura ao futuro.
Esse movimento de abertura ao futuro vai ao encontro de quem queira prosseguir o que aqui foi investigado e revelado, tendo-o feito Gonçalo Couceiro como quem cumpre um dever, obtém uma garantia, ou responde a uma pergunta. A irresistível, intrigada e curiosa autora dessa pergunta é, como acontece nos melhores casos, a sua própria resposta.
José Manuel dos Santos