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Os filmes que nos conquistaram em 2024, as interpretações que ficam na História e as maiores desilusões – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Dez 25, 2024

Neste balanço cinematográfico de 2024 entre quem, no Observador, está mais atento aos filmes, apontamos não apenas os títulos que mais gostámos de ver ao longo dos últimos 12 meses (realçando que as contas são relativas a produções que se estrearam nas salas nacionais este ano). Fizemos questão de destacar um elemento intemporal: as interpretações que conquistam um espaço próprio na história do cinema, por vezes indo além daquilo que o filme em questão consegue alcançar. Mas também decidimos tomar nota das maiores desilusões que 2024 nos trouxe, longas metragens que nos tinham expectantes mas que nos perderam assim que saímos da sala (talvez ainda antes) — ainda que este seja o ano em que o cinema parece ter recuperado a vontade de inscrever-se no campeonato da atenção, face a um rival que perdeu muita qualidade: as séries.

“Guerra Civil”, de Alex Garland

Há uma leitura elementar que se faz de Guerra Civil e que não está certa ou errada, mas que funciona como sinal dos tempos: quem vê tem de tomar um partido. Esta leitura convida a pensar em Garland como um cobarde, porque o filme não assume uma posição no cenário interno nos Estados Unidos contemporâneos que retrata. Só que há outra leitura: Garland não está fixado nos códigos de narrativas habituais, porque parte da sua formação e carreira vem dos videojogos.

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Guerra Civil concretiza bem a ideia daquilo que um videojogo pode – e deve – ser no cinema, em que quem toma o partido somos nós, a partir dos olhos de quem controlamos (ou decidimos controlar). A câmara de Garland conduz-nos,  nos melhores momentos, por essa ideia e talvez a sensação de abandono que se sente (para onde ele nos está a levar? O que devemos sentir?) se deva a isso, à estranheza de códigos de linguagem que estavam num lugar (videojogos) e agora estão noutro (cinema).

“Dune — Parte Dois”, de Denis Villeneuve

As duas partes de Dune de Denis Villeneuve são o princípio de algo, da expansão de um universo por vários canais da Warner Bros., que neste ano já começou a ser visível através da série Dune: Prophecy (Max).  Contudo, os filmes não têm o defeito de saber a pouco e a segunda parte de Dune completa muito bem a promessa deixada pela primeira.

Mais do que dever cumprido, tem respostas e consegue tornar clara uma história muito densa, com várias camadas. O que fica por responder não é essencial, o essencial está lá, nas duas partes de Dune. Podemos sempre ficar a pensar no que seria a adaptação de David Lynch (se fosse como ele queria) ou de Jodorowsky (se a tivesse feito), mas, na realidade, Villeneuve cumpriu.

“A Sala de Professores”, de Ilker Çatak

Quase sempre foi assim, mas nas últimas duas décadas a escolha da escola como representação de um microcosmos face ao mundo tem sido muito proeminente. A Sala de Professores é um belíssimo exemplo disso, mas com uma grande situação moral, que acontece naquele espaço, quando uma professora deixa a câmara do computador ligada para ver se apanha alguém a roubar.

Apanha e isso depressa leva a uma situação que gera ao quase-colapso de várias coisas, enquanto coloca em questão tudo aquilo que se vai vendo no ecrã. Afinal, até que ponto devemos sair dos nossos lugares e ser justiceiros? E, se o formos, que exemplo estamos a dar?

“A Zona de Interesse”, de Jonathan Glazer

Jonathan Glazer resolveu adaptar o romance de Martin Amis e, como já havia feito no passado, tomou algumas liberdades. A Zona de Interesse conta a história da família de Rudolf Höss (Christian Friedel) e do seu dia-a-dia paredes meias com o campo de concentração de Auschwitz. Os dias são normais, as noites também, exceto quando são perturbadas pelo som dos horrores que aconteciam dentro do campo. Só que também há uma normalidade nisso, porque toda a gente parece estar indiferente — ou habituada, conformada.

Para lá do que sabemos da história, o som é o nosso condutor para o horror da memória e é impressionante como até isso parece normalizado dentro do filme. Menos, claro, para quem não está habituado a isso: como, por exemplo, quando a sogra de Höss os visita e percebe que não há nada de idílico ali, há apenas uma verdade que uma maioria escolhe não atravessar.

“Grand Tour”, de Miguel Gomes

Em Grand Tour persiste uma certa ideia de alguns filmes de Miguel Gomes (sendo Tabu o melhor exemplo) em volta de uma certa glória da memória, de tempos melhores, que se misturam com a história e as artes, sobretudo literatura e cinema. Por isso, é difícil por vezes perceber se a romantização do passado é real é ironia.

Seja como for, ela adequa-se ao romance, ou à procura de romance, que acontece ao longo de Grand Tour: numa parte, um homem foge de uma mulher; na outra vemos essa perseguição pela perspetiva da mulher. Não é o melhor Gomes, mas tem um final mágico, que vale a pena experienciar, mesmo que o resto não saiba assim tão bem.

Interpretação para a História: Justice Smith em “I Saw the TV Glow”

O filme de Jane Schoenbrun é uma daquelas cartas de amor ao passado – neste caso aos 1990s – das que já vimos muitas vezes, mas que persistem durante muito tempo. E, tal como muitas dessas cartas de amor, é uma história em volta do coming of age, neste caso de um adolescente interpretado por Justice Smith, que continua a impressionar depois de uma carreira que, até agora, tinha tido os seus pontos altos na televisão, em The Get Down e, sobretudo, em Genera+ion.

Desilusão do ano: “O Colecionador de Almas”, de Oz Perkins

É de desconfirar quando um filme é apresentado como o “novo” ou o “próximo” qualquer coisa, mas, por vezes, vale a pena dar o benefício da dúvida. Pode ser uma questão de marketing, pode ser uma opinião crítica. Aqui, é o próprio O Colecionador de Almas que quer muito ser o próximo O Silêncio dos Inocentes. E não é que seja mau nesse gesto, até é um exercício interessante, mas está tão preocupado em ser uma outra coisa que encrava em soluções óbvias para aquilo que parecia ser um filme com um enigma interessante. Não o é, ou então, deixa de o ser com a sua obsessão em ser outra coisa qualquer.

“Ferrari”, de Michael Mann

Passado durante algumas semanas do Verão de 1957, decisivas para a vida familiar, empresarial e desportiva de Enzo Ferrari, este filme vem de um tempo em que os construtores de carros de corrida tratavam a velocidade por tu, tal como os seus pilotos, que deixavam cartas de despedida às namoradas e mulheres quando iam correr em provas mais perigosas, e os motores de combustão interna não eram vistos como uma monstruosidade a eliminar.

Michael Mann faz a exaltação cinematográfica da velocidade e da competição através da recriação das Mil Milhas de 1957, e Adam Driver personifica o Commendatore com uma verosimilhança física, de carácter e de temperamento que só encontra igual no recato expressivo da personagem.

“Folhas Caídas”, de Aki Kaurismaki

Um metalúrgico que perde emprego atrás de emprego porque bebe muito, e uma empregada de um supermercado despedida por levar para casa comida cuja data de validade expirou. Estas duas almas solitárias encontram-se num bar de karaoke. E vão andar desencontradas durante quase todo o resto do filme, por causa de números de telefone perdidos, acidentes com transportes públicos e da copofonia casmurra do homem.

Na atmosfera macambúzia, na estética e na dramaturgia, no understatement visual, verbal e emocional, e no desconcertante convívio do anacrónico e do antigo com o contemporâneo, Folhas Caídas é uma história de amor tipicamente kaurismakiana. Amor esse que acaba por triunfar contra todas as pequenas prepotências, adversidades, contrariedades e incidentes.

“Terra Queimada”, de Thomas Arslan

Segunda fita de uma trilogia policial protagonizada pelo lacónico Trojan (Misel Maticevic), um ladrão profissional, solitário e errante (a primeira, Nas Sombras, de 2019, está na Filmin). Alemão de origem turca, Thomas Arslan filma este típico heist movie na melhor tradição da frugalidade expressiva, pouco loquaz e sombria da Hollywood dos anos 40 e 50, de um Jean-Pierre Melville ou do Michael Mann de O Ladrão Profissional,

A história enquadra-se numa Berlim quase sempre noturna por onde as personagens se movimentam sem espalhafato, um cenário urbano frio e “utilitário”, um mundo movediço, mesquinho e incerto de desconfiança permanente, cautela total, lealdades frágeis, traição e manipulação, de que espreme todo o suminho de tensão do filme. Arslan é o inventor do Berlim noir.

“Anora”, de Sean Baker

Pegando no velho tema da “prostituta/stripper/dançarina com um coração de ouro”, Sean Baker glosa-o em Anora, ao mesmo tempo que reduz a pó o irrealismo fofinho de filmes como Pretty Woman: Um Sonho de Mulher. Anora, ou Ani (fabulosa Mickey Madison) é uma jovem e vivaz dançarina erótica uzbeque-americana, que se prostitui com alguns clientes. E que se casa precipitadamente com um cliente, Vanya, o filho mimado, borguista e irresponsável de um oligarca russo que está a estudar nos EUA.

Anora é a comédia dramática e screwball possível nos nossos dias, com um pronunciado viés étnico, um enredo sentimental anti-Cinderela e um comentário social sobre a vida e os trabalhos de pessoas como Ani, e o abismo entre os que têm muito e os que se esforçam para ter um pouco que seja.

“Jurado Nº2”, de Clint Eastwood

Estreado, vergonhosamente, pela Warner Bros num pequeno número de cinemas nos EUA, e limitado em vários outros países – caso de Portugal – ao streaming (na Max), o mais recente filme do nonagenário Clint Eastwood (e que poderá ser o último) é o seu Crimes e Escapadelas, mas sem o final amoral e niilista da fita de Woody Allen.

Aparentemente mais um mero courtroom drama, em que um jovem que vai ser pai é convocado para fazer parte de um júri e apercebe-se que está envolvido no caso, Jurado Nº2 torna-se numa história sobre o combate entre interesse pessoal, dever moral, sentido da justiça e culpabilidade, e as imperfeições do sistema judicial, filmado por Eastwood com uma limpidez de exposição e narração, uma circunspeção cinematográfica e uma eficácia dramática consumadas.

Interpretação para a História: Mikey Madison em “Anora”

Vimo-la como uma das raparigas da “família Manson” em Era Uma Vez em Hollywood, de Quentin Tarantino, que acaba esturricada a lança-chamas na piscina de Leonardo DiCaprio. No papel de Anora, ou Ani, a jovem dançarina erótica e prostituta ocasional da fita de Sean Baker vencedora do Festival de Cannes, a portátil, sexy e dinâmica Madison leva o filme à frente. E personifica a energia que o anima e a tragicomédia que o define, interpretando, com espontaneidade, garra e um misto de experiência de quem foi obrigado a crescer e a safar-se por si muito cedo e depressa, e de inocência e credulidade ainda infantil, uma Ani tão prática e calejada profissionalmente, como cândida na ilusão romântica de ter encontrado o seu Príncipe Encantado. Num mundo calculista, frio e cínico, Ani atreve-se a ter esperança. E Mikey Madison põe-nos do lado dela, sem reservas.

Desilusão do ano: “Megalopolis”, de Francis Ford Coppola

O autor de O Padrinho e O Padrinho — Parte II investiu 120 milhões de euros do seu bolso, provenientes da venda de parte da sua exploração vinícola na Califórnia, para concretizar este projeto que acalentava há décadas. Em 1978, então a filmar Apocalypse Now, Coppola disse que o seu maior medo era que estivesse a fazer um “filme mesmo mau, embaraçoso e pomposo sobre um tema importante”. A frase que não serviu àquele aplica-se agora a Megalopolis, passado numa Nova Iorque retro-futurista e decadente, reimaginada como Nova Roma. É uma salada de idealismo pueril, gigantismo superficial, primarismo alegórico, auto-importância insuflada, infantilismo político, incoerência narrativa, pretensão filosófico-cultural risível e visão artística desgovernada. E um colossal fracasso comercial.

“Anatomia de uma Queda”, de Justine Triet

Uma escritora é acusada de ter empurrado o marido do último andar da casa onde vivem, na calmaria das montanhas. A quarta longa-metragem da francesa Justine Triet (Óscar de Melhor Argumento Original e Palma de Ouro, em Cannes) leva o espectador para o interior do tribunal onde decorre o julgamento desta mulher acusada de homicídio.

As duas horas e meia voam neste exercício de introspeção cheio de dilemas morais, em que a dúvida sobre a culpa ou inocência da personagem nos persegue até ao fim.

“Desconhecidos”, de Andrew Haigh

Nem a popularidade dos protagonistas — os atores Paul Mescal e Andrew Scott — impediu que, em Portugal, Desconhecidos fosse parar diretamente ao streaming (Disney+). Merecia mais este filme escrito e realizado pelo britânico Andrew Haigh e vagamente inspirado no romance do escritor japonês Taichi Yamada, Strangers.

Nada prepara o espectador para o que aí vem e revelá-lo será estragar a magia, por isso direi apenas que é um filme duro, sobre solidão, trauma familiar, e recomeços. As interpretações dos atores são belíssimas e a banda sonora (Blur, Pet Shop Boys) acerta em cheio.

“Vidas Passadas”, de Celine Song

À primeira obra, a dramaturga sul-coreana Celine Song foi capaz de contar uma história de amor sem sentimentalismos — um desafio difícil atentando à cinematografia recente.

Muitos verão em Vidas Passadas ecos da melancolia da trilogia de culto Antes do Amanhecer (1995), de Richard Linklater, também pela forma como os atores Greta Lee e Teo Yoo são conduzidos numa dança de encontros e reencontros ao longo de vários anos. A naturalidade dos diálogos (e, já agora, dos silêncios) revela a inegável sensibilidade de Song como argumentista.

“Grand Tour”, de Miguel Gomes

18 anos depois, um filme português voltou à competição do Festival de Cannes, de onde saiu premiado e isso, desde logo, é um marco para o cinema português. Miguel Gomes apresenta-nos aos noivos, Edward e Molly, que em 1917 atravessam a Ásia, da Birmânia até à China, ele em fuga do casamento, ela atrás dele por acreditar no amor que os une.

Um filme contemplativo e poético, que mistura o périplo filmado em estúdio (imaculada direção de arte) com imagens documentais contemporâneas. O preto e branco da fotografia assinada por Rui Poças contrasta com todos os tons da interpretação de Crista Alfaiate.

“A Substância”, de Coralie Fargeat

Demi Moore veste a pele de uma estrela em decadência que usa uma substância ilegal para obter uma versão jovem de si mesma. Sátira à sociedade patriarcal, crítica aos padrões irrealistas de beleza, parábola sobre o envelhecimento feminino, retrato do pernicioso mundo do showbiz.

A Substância, o thriller gore de Coralie Fargeat que este ano fez correr tinta na imprensa e caracteres online por ter levado espectadores a sair a meio das sessões, é tudo isto. Só que etiquetá-lo de “filme feminista”, pese embora não seja errado, é também reduzi-lo. A Substância é, mais que um manifesto, a prova de que o cinema contemporâneo pode trazer algo de verdadeiramente novo. Enojou uns, encantou outros, mas, sobretudo, não deixou ninguém indiferente.

Interpretação para a História: Mikey Madison em “Anora”

O filme de Sean Baker sobre uma jovem stripper que se envolve com o filho de um oligarca russo tem muitas virtudes, sendo uma das maiores a protagonista: Mikey Madison, atriz-revelação que rouba a tela nesta personagem que lembra uma Pretty Woman desprovida de um final feliz. Será cedo para falar num Oscar buzz? Depois de uma aparição discreta em Once Upon a Time in Hollywood (2019), de Quentin Tarantino, certo é que depois de vestir a pele de Anora, ou Ani, dificilmente o nome Mikey Madison voltará a passar despercebido.

Desilusão do ano: “Megalopolis”, de Francis Ford Coppola

Seria possível assistir ao novo filme do autor de O Padrinho, Apocalypse Now ou Do Fundo do Coração sem nenhuma expectativa? Não. Pelo contrário, seria de esperar que algo que esteve décadas em maturação na cabeça de um cineasta que fez tanto pelo cinema tivesse algo de significativo a dizer — além do aparato visual, da ficha técnica sonante ou dos 120 milhões de dólares pagos com o dinheiro das vinhas do realizador. Obra-prima para uns, megaflop para outros, certo é que a fábula de uma Nova Iorque tornada Roma antiga levou muitos espectadores portugueses ao cinema. Daqui a 50 anos também haverá quem esteja a vê-lo, dizem os apaixonados pelo desastre de Coppola. Mas esses não terão de lamentar os oito euros do bilhete.

“Tardes de Soledad”, de Albert Serra

Albert Serra é visto como um dos mais criativos e surrealistas realizadores do mapa actual. Tem cara de enfant terrible. Marimba-se para o que os outros pensam. E não tem causas. É talvez por isso que resolveu fazer o primeiro documentário da sua carreira sobre touradas.

Acompanhamos o prodígio Andrés Roca Reyes durante várias pegas, suportado pela sua alcateia de homens, que o seguem como um Deus pelas praças de touros de Espanha. Não interessa o público. Nem o que se diz lá fora, dos mais fanáticos aos activistas contra. Muito sangue, suor, tensão, nada fica por filmar. O cinema pode transformar o horror numa obra de arte? Não sabemos. Nem Albert Serra quer saber da nossa resposta.

“No Other Land”, de Yuval Abraham, Basel Adra, Rachel Szor e Hamdan Ballal

Existe uma tendência cínica muito grande no cinema ocidental para realizadores e realizadoras decidirem, como forma de purgar os seus pecados, fazer filmes sobre países em guerra. “No Other Land” foi feito por um colectivo de palestinianos e israelitas que mostram a destruição e uma parte da Cisjordânia por parte dos colonatos de Israel.

Nenhuma reportagem sobre este conflito do Médio Oriente consegue o que este filme alcança: a sensação de incapacidade total perante uma injustiça. Não há forma de tapar os olhos. Nem de mudar de canal.

“Anora”, de Sean Baker

Sean Baker tem o dom de pegar em figuras da classe trabalhadora (e esquecida) norte-americana  e dar-lhes uma luz única, uma nova vida: Red Rocket (2021), The Florida Project /2017), Tangerine (2015), é preciso mais? Em “Anora”, a acompanhante de luxo/streaper Anora enamora-se de um filho de um oligarca russo.

O que começa por ser uma típica comédia romântica transforma-se num maravilhoso caldo entornado, porque os capangas do filho têm de terminar o casamento em três tempos. Não há mensagens, nem moralismos, nem pena, porque a atriz Mikey Maddison não nos dá descanso por um segundo. Os grandes filmes não precisam de o parecer. Basta serem originais. Este é. E muito.

“Os Delinquentes”, de Rodrigo Moreno

O cinema argentino pode estar ameaçado sob a presidência de Javier Milei, mas enquanto resistir, cá estaremos para o apreciar. Rodrigo Moreno traz-nos um assalto a um banco feito por um funcionário da instituição. Tudo bem planeado, sem levantar grandes ondas, Móran, o nosso protagonista, até tem um amigo que ajuda. Problema: os obstáculos, os interstícios, as mulheres e os homens que nos surgem quando menos se espera. Vive-se com arrasto, entre a busca por uma liberdade que só o dinheiro pode garantir. Mas será que garante?

O contraste entre a cidade, lugar de onde não se pode escapar, e o campo, segredo bem escondido onde nos expandimos, reforça a possibilidade de todos nós, a certa altura, já queremos ter posto termo ao que andamos a fazer e mudar para outro futuro qualquer. O problema é que a realidade pode, muitas vezes, não ser favorável. Há um delinquente à espreita onde menos se espera. O sentido de desespero de Os Delinquentes, onde não há sobressaltos mas um murmurinho de fatalismo à espreita, é o grande coração deste filme, que nunca tem pressa de se esgotar na narrativa.

“O Banho do Diabo”, de Veronika Franz e Severin Fiala

Não sei se já alguma vez aconteceu a quem lê este texto, mas ir ao cinema pode ser uma experiência transcendental. Especialmente quando nos encontramos num momento chave da vida e acabamos numa grande sala em Berlim, com a cabeça bem ao alto como quem está a olhar para uma qualquer figura divina, a ver um autêntico filme de terror. No fim, a não-reação, a quase falta de ar e um pensamento insistente: é melhor ligar para casa. Banho do Diabo, que venceu o Urso de Prata na Berlinale, viaja até à Alemanha rural do século XVIII onde se praticava o chamado “suicídio indireto”, de pessoas que não se conseguiam matar pelo medo da condenação eterna e, por isso, assassinavam adultos, crianças ou mesmo bebés.

Os autores Severin Fiala e Veronika Franz foram até às profundezas do horror folk para explorar a psicose de uma mulher que é incapaz de corresponder às expectativas do marido e da sogra. O cinema sempre esticou os limites do aceitável, do que não queremos ver ou do que não acreditamos que possa ser sequer verdade. No género de “terror psicológico”, Banho do Diabo permite constatar que, o presente, com todas as suas falhas, não é assim tão mau. Ao recordar este filme, voltou a questão: volto a ligar para casa?

Interpretação para a História: Karla Sofia Gascón, em “Emília Pérez”

Uma das maiores surpresas deste ano foi quando percebemos que em Emília Pérez o mau da fita Manitas del Monte, barão de droga mexicano que quer fazer a transição para mulher, é interpretado por Karla Gascón Sofia. E mais surpreendente é quando se dá conta de que a atriz espanhola, mais conhecida por novelas e sem papéis memoráveis no cinema, fez força para conseguir interpretar os dois papéis: o de vilão assustador e o de mulher de negócios que quer ajudar os familiares das vítimas do tráfico de droga. Emília Pérez é um dos filmes mais falados do ano e é provável que cause algum impacto nos Óscares (já lidera as nomeações aos Globos de Ouro). Na conversa em que esteve o Observador no festival de San Sebastián, Karla Sofia Gascón revelou que gosta da visibilidade que o filme está a dar à comunidade trans, mas não quer ser só conhecida como a provável primeira mulher trans nomeada à estatueta dourada. Não se sabe o desfecho da cerimónia, mas o facto de conseguir carregar duas pessoas num só filme, com toda a carga emotiva que acarreta, é digno de um lugar no pódio.

Desilusão do ano: “O Quarto ao Lado”

Como é que Pedro Almodóvar pode desiludir? Ninguém é infalível. Um realizador cujo trabalho faz com que, cada vez que vemos um filme de sua autoria sabemos perfeitamente que tem a sua assinatura? Pois é, mas a primeira longa-metragem em inglês responde a esta pergunta, para mal dos nossos pecados. “O Quarto Ao Lado” venceu o Leão de Ouro em Veneza e está bem posicionado na corrida aos Óscares. Tilda Swinton e Julianne Moore tem se desdobrado em elogios por terem tido a oportunidade ao universo iconoclasta cheio de cor e trauma que já nos deu “Tudo Sobre A Minha Mãe” ou “Voltar”. Mas a história da antiga jornalista que decide eutanasiar-se e pede ajuda a uma muito afastada amiga é demasiado bem comportada. É o caso do filme propaganda, que neste caso até aponta para o caminho certo, mas dentro de tanto cliché e plasticidade, acaba a aborrecer-nos. E Almodóvar nunca foi sinónimo de aborrecimento. Até chegarmos ao quarto ao lado.





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