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As palavras as ações – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Abr 1, 2024

A nova Legislatura começou no dia 26 de março, e, entre o guião previsto para esse dia, e o concretizado, houve significativa divergência.

No dia 27, comemorou-se o Dia Mundial do Teatro.

Sem ironia, é bom refletir sobre o sentido teatral, na política e na vida.

Hoje, “ir ao teatro”, a maior parte das vezes, reduz-se a um programa noturno ou de fim de semana, como ato de entretenimento. Não foi assim durante séculos, e, em muitas sociedades. O Teatro, enquanto ato artístico, esteve (está, pode estar), intensamente, ligado à vida da comunidade. Momento de encontro, face ao exercício da representação num palco (e “palco” são todos os lugares possíveis). Representação das emoções, dos desafios, provocação dos sonhos e das expetativas. Desde a Pré-História, o exercício a que hoje chamamos teatral, correspondeu a uma forma importante de consolidação dos laços sociais, dos valores comuns, de reflexão sobre questões críticas da pessoa e do coletivo, de desafio entre as fronteiras do instituído e do novo. A metáfora, a arte do movimento corporal, a mimetização, a oralidade, a transmissão discursiva, através da voz, das vozes, contribuiu (contribui) para a densificação dos sentidos do material e do imaterial, alargando campos do olhar, do entendimento e da reflexão. Na promoção destas dinâmicas, desde as práticas xamânicas, aos rituais de iniciação, das representações evocativas da fecundidade e da caça e das giestas da guerra, dos textos trágicos aos da comédia, da celebração do amor e ao desnudar do bem e do mal nos nossos corpos e nos nossos espíritos, o Teatro, nas suas diferentes formas, momentos históricos e sociedades, tem sido uma força importante de construção pessoal e social.

Tom Stoppard, num texto teatral pós-shakesperiano, de 1966, põe um personagem a dizer: “Palavras, palavras. É tudo o que temos para continuar.”

Falo de Teatro, de palavras e da sua importância como forma de ação, a propósito do empobrecimento do exercício teatral na arena pública, de que o Parlamento é espaço maior.

Os Parlamentos, como diz a origem semântica da palavra (parler, parabolare) são o lugar da expressão pela palavra. Nos Parlamentos, as palavras, seja nos exercícios de oratória parlamentar, seja nos textos escritos de leis, recomendações, pareceres, relatórios, as palavras estão no centro da sua atividade. São a sua matéria prima, o seu sustento, a sua produção. Palavras mais ou menos buriladas, discursos mais ou menos elegantes. Nos Parlamentos, ao longo da História, já passaram grandes tribunos e outros que é melhor não lembrar. As palavras são parte essencial do teatro da política. O desempenho dos políticos é um trabalho de representação, face aos papéis que ocupam. O desempenho destes papéis, como para qualquer tipo de ator (em sociedade, todos cumprimos papéis) implica preparação, consciência e ação. O ator, quando entra em cena, tem um discurso para transmitir. O discurso pode ser melhor ou pior, mais ou menos adequado. Seja como for, o discurso implica, sempre, intencionalidade discursiva. Quer dizer, mesmo quando dizemos coisas que não queremos dizer, porque interpretámos mal uma situação, por ignorância, porque estamos zangados e a irritação faz-nos dizer coisas que, se estivéssemos calmos não diríamos, e por aí fora, mesmo nestas situações, há intencionalidade. Ou seja, a cólera tem razões que levam a certo tipo de palavras, o mal entendimento de dada circunstância implica razões que ditaram a incompreensão. Se existe intencionalidade, mesmo quando esta representa divergência entre o que se diz e o que, noutras circunstâncias, se diria, pode afirmar-se que, a maior parte das vezes, quando dizemos o que dizemos, sabemos o que estamos a dizer. Ou seja, há consciência, há intenção, nas palavras ditas.

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Nos Parlamentos, é difícil acontecerem momentos discursivos onde há divergência entre o que se diz e o que se quer dizer. Os atores são treinados para o uso da palavra e a palavra é parte determinante dos trabalhos parlamentares, projetado para a audiência que assiste ao vivo e aquela que, em direto ou em diferido, tem acesso às cenas parlamentares, pelo canal Parlamento, pela comunicação social, ou pelas redes sociais. Assim, o Parlamento é uma das casas de teatro mais importantes do país, onde os diferentes atores representam interesses, expetativas, emoções, ideias, que procuram ser a voz dos eleitores ou ser a voz que influencia os eleitores, a voz do poder governamental e as vozes da Oposição, tendo, neste contexto articulatório, o quadro essencial do exercício discursivo.

A responsabilidade dos atores parlamentares é elemento crítico do reconhecimento, pela comunidade, do valor, do sentido e da relação entre palavras e ações.

Como antónimo do que esta afirmação significa, a irresponsabilidade dos atores parlamentares promove a degradação das dinâmicas de reconhecimento e de coesão em torno de valores.

A nova legislatura, mostra uma arena teatral onde os atores assumem novos cenários, novas expetativas e novos propósitos.

A diminuição da abstenção nas eleições do passado dia 10 de março e o aumento do voto dos jovens são uma boa notícia. Por outro lado, mostram a eficácia do trabalho de influência/manipulação através das redes sociais, e de todos os instrumentos contemporâneos à sua disposição.  Instrumentos para a elaboração de conteúdos manipulados ou falsos, através de tecnologias/avatares/influencers que os promovem como verdadeiros, com adesões maciças, ampliadas pelos instrumentos de propagação e reiteração que a análise de dados e a utilização da IA generativa hoje permitem.

A existência de uma tendência de ampliação do pensamento conservador extremista é um dado hoje evidente, como é evidente que este é não só uma presença que já tinha sementes na sociedade, mas um campo regado pelas provocações conscientes ou inconscientes que certas forças de Esquerda promoveram ao longo dos últimos anos, deitando achas para a fogueira.

A ética da verdade é algo que, em política, está sujeita a muitas ponderações. O que se passou no passado dia 26 de março no Parlamento da República, com o espetáculo promovido pelo Chega e pelos seus atores parlamentares, significa que esta arena teatral vai estar sujeita, nos próximos anos, a novas regras. Uma força parlamentar como a do Chega, não pretende, tal como demonstrou, dignificar o Parlamento. Antes pelo contrário, através da sua erosão, mostrada em direto — como um espetáculo de marionetas de má qualidade numa feira popular — pretende-se erodir a respeitabilidade do teatro da democracia, da arena onde o Poder legítimo se exerce.

Esta ação deliberada tem, provavelmente, uma intenção associada – a erosão da própria democracia. Mostrar que a democracia não funciona e que há quem possa “pôr isto na ordem.”

O cuidado, o profissionalismo, a exigência, que o PSD e o PS vão ter de por nesta legislatura, não é a tradicional representação do papel de Governo e Oposição. É isso, mas é, também, o desafio de nesse exercício teatral, não deixar que entre a semente da baixa comédia, que procura levar o povo a olhar para aqueles que se apresentam como os salvadores da pátria.

A ascensão e ocaso do poder autoritário de Direita na Hungria, mostra bem o que estes poderes representam, mesmo quando têm grande adesão popular.

A coesão entre as forças de Extrema Direita europeias num projeto comum de tomada de poder na Europa, também não é segredo para ninguém. Como dificilmente será segredo a proximidade à Rússia, demonstrada por ações concretas destas forças políticas, pelas revelações das intervenções de hackeres russos nas redes sociais e pelo financiamento de certos atores sociais.

A Rússia, como força imperialista, se puder reduzir a Europa a um poço de antagonismos – como está a acontecer – consegue o objetivo maior da afirmação do seu poder territorial e de domínio populacional.

Não há contemplações nesta guerra na Europa Ocidental. Se não é a guerra que, com muita dor e morte, já acontece na frente Oriental, com o sacrifício do povo ucraniano, é a guerra entre palavras e ações, que no curto e médio prazo vai definir o rumo da História Europeia.

O parlamento português, é uma das arenas desta contenda, deste teatro do mundo.

Esperemos que os atores que têm o dever de representar os valores da liberdade, da democracia, do pluralismo, estejam à altura de demonstrar a importância dos mesmos como orientação para o projeto político europeu.

Se não tiverem essa capacidade, será compreensível que o campo dos que promovem os valores do autoritarismo, da manipulação e da segregação, ganhem.

Palavras e ações: senhoras e senhores, a cortina abriu-se, o espetáculo vai começar.



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