O Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, insinuou esta semana que um tio seu teria sido comido por canibais na Papua Nova Guiné na Segunda Guerra Mundial, o que causou indignação no país — uma situação que tem potencial para criar entropia numa altura em que Washington tem procurado aproximar-se daquele país do Pacífico e tentado diminuir a influência chinesa na região.
De acordo com o The Guardian, a polémica surgiu num discurso de Biden durante uma ação de campanha na quarta-feira na cidade de Pittsburgh, no estado da Pensilvânia. Biden recordou a história do seu tio Ambrose J. Finnegan Jr., referindo-se a ele como o “tio Bosie”, um aviador que combateu na Segunda Guerra Mundial, vindo a morrer na sequência da queda de um avião no dia 14 de maio de 1944, no Pacífico.
No discurso, Biden contou à plateia que o seu tio pilotava pequenos aviões militares em missões de reconhecimento até ao dia em que “foi abatido na Nova Guiné”. Acrescentou que “nunca encontraram o corpo porque costumava haver muitos canibais a sério naquela parte da Nova Guiné”.
A declaração de Biden, segundo o The Guardian, entra em contradição com os registos oficiais, que dizem que Ambrose J. Finnegan Jr. seguia como passageiro a bordo de um avião militar quando, “por razões desconhecidas”, a aeronave teve de amarar de emergência. “Ambos os motores falharam a baixa atitude e o nariz do avião bateu na água com força”, lê-se nos registos, que acrescentam ainda que um único membro da tripulação sobreviveu ao desastre e que os destroços do avião afundaram, nunca tendo sido encontrados.
Os corpos dos restantes passageiros e tripulação também nunca foram encontrados. Não há qualquer referência à questão do canibalismo naqueles registos citados pelo jornal britânico.
Na Papua Nova Guiné, as palavras de Joe Biden foram recebidas com indignação, de acordo com vários responsáveis ouvidos pelo The Guardian.
Michael Kabuni, professor de ciência política na Universidade de Papua Nova Guiné, classificou “este tipo de categorização” como “muito ofensiva”, não necessariamente pela referência ao canibalismo — que é uma antiga prática conhecida na região —, mas pela falta de contexto.
“Implicar que o tio salta de um avião e, por alguma razão, achamos que é uma ótima refeição é inaceitável”, disse.
O académico explicou ainda que, no passado, em algumas comunidades e contextos específicos, existia a prática do canibalismo, mas não devido à falta de alimentos no país. Em algumas comunidades, ainda nas primeiras décadas do século XX, chegou a existir a prática de comer o corpo de um familiar que tinha morrido, para evitar a decomposição do cadáver.
“Havia contexto. Eles não comiam qualquer homem branco que caísse do céu”, assinalou o académico, lembrando que cerca de 79 mil soldados americanos nunca foram encontrados na sequência da Segunda Guerra Mundial. “O que é que Biden está a insinuar? Que os 79 mil que nunca foram encontrados foram comidos?”
Também em declarações ao The Guardian, o governador da província de Sepik Oriental, Allan Bird, disse ter achado “hilariantes” as declarações de Biden e garantiu não se sentir ofendido. “Seguramente, quando Biden era uma criança, essas eram as coisas que ele ouvia dos pais. E provavelmente isso ficou-lhe na cabeça toda a vida”, assinalou.
Já o economista Maholopa Laveil, também da Papua Nova Guiné, lamentou as palavras de Biden, dizendo que pintam uma imagem negativa de um país que já tem “má imprensa”.