Aqueles que vimos no 25 de Abril, não o fim de um regime com o qual não nos identificávamos, mas o fim de um Portugal que tinha as grandezas e as servidões de ser o primeiro e último império europeu, temos agora pouco que comemorar. Mas também não vamos estragar a festa: o passado está passado e a nostalgia é uma sereia enganadora e perigosa que pode cegar-nos e paralisar-nos para o presente e impedir-nos de enfrentar o futuro.
De resto, há agora uma novidade que tende a passar despercebida: é que hoje os saudosistas não são já os nostálgicos do antigo regime, nem até do antigo Portugal do Minho a Timor, são antes os que, de lágrima ao canto do olho, punho erguido e cravo ao peito, saem à rua numa viagem sentimental até ao golpe militar de há meio século e aos “bons velhos tempos” do festivo processo revolucionário que se lhe seguiu. Quem agora tende a perder-se num “oh tempo volta para trás” feito de velhas palavras de ordem, antigas canções de protesto e novos saneamentos e cancelamentos, são os que, denegrindo irrealisticamente o país que era e floreando delirantemente a revolução e a exemplar descolonização que lhe puseram fim, se abstraem do país que temos e do presente que aqui está.
Porque se o Portugal nação multinacional e pluricontinental se transformou numa utopia nostálgica, arquivada nos mapas que sobrepunham o então “império português” à carta da Europa, também o Portugal comunista que alguns quiseram impor pela força acabou dezoito meses depois de Abril, no dia 25 de Novembro de 1975. Essa é, goste-se ou não, a data fundacional da democracia pluralista em Portugal. Há até quem a transfira para a Constituição de 1976, ou ainda para Setembro de 1982, com o fim do Conselho da Revolução e do poder de controlo dos restos do MFA sobre os representantes do povo.
Qualquer história independente do Estado Novo estabelecerá que, não sendo o regime um regime fascista, não havia partidos políticos, não havia liberdade de expressão, as eleições eram manipuladas pelo poder e os comunistas activos podiam ir para a cadeia. Dirá também que o facto de Estado Novo ser um autoritarismo e não um regime democrático facilitava a promoção de políticas de Estado – obras públicas, infraestruturas, industrialização. Isto porque, contrariando a narrativa generalizada, os historiadores económicos têm vindo a provar que as duas últimas décadas do Estado Novo foram as de maior convergência de Portugal com os países desenvolvidos da Europa; ou que, no Estado Novo, o analfabetismo foi drasticamente reduzido em relação à Primeira República, com as “escolas primárias” a fazerem a quadrícula do país (e a retirarem às campanhas de alfabetização de Abril a glória da inauguração da educação pública em Portugal).
De qualquer forma, se o apoio ao regime até aos anos cinquenta tinha vindo sobretudo da experiência democrática da Primeira República (quase 50 governos em 16 anos, com o Partido Democrático a ganhar sempre as eleições), a memória dessa “balbúrdia sanguinolenta” foi-se esvaindo e as novas gerações começaram a mostrar-se desejosas das liberdades políticas europeias. As eleições de 1958 foram prova disso.
O regime caiu também porque era exótico no meio das democracias da Europa e só sobrevivia – como sobreviveu depois de 61, com o princípio da Guerra de África – porque encontrava sentimentos patrióticos ainda muito fortes entre o povo e as classes médias em relação ao então Ultramar. É claro que o desaparecimento de Salazar seria também decisivo, já que o Estado Novo tinha sido por ele criado em 1933, a partir da Ditadura Militar de 1926. Os regimes políticos são moldados pelos dirigentes e, por vezes, há incompatibilidade entre a personalidade do dirigente e o modelo do regime. Foi o que se viu na União Soviética, com a chegada ao poder de Gorbachev. Para governar a URSS era preciso ser brutal e não ter limites éticos e Gorbachev mostrou-se incapaz dessa brutalidade. E quando retirou o medo, fez cair um regime que, desde Lenine, Estaline e os seus sucessores, vivia do medo.
Com o Estado Novo deu-se um fenómeno paralelo. Salazar era um homem de decisões, que podia demorar a decidir, mas que, uma vez tomada a decisão, a defendia com grande inflexibilidade; Marcelo Caetano, sendo um homem íntegro e um académico inteligente, era um Hamlet num regime que precisava de decisão. A guerra de África, uma guerra de tipo colonial feita com o contingente geral, acabou por criar problemas no Corpo de Oficiais. E quando se procuraram soluções – com a criação do Quadro Especial de Oficiais – houve um ressentimento corporativo entre aqueles que se sentiram atingidos nos seus direitos de antiguidade.
Mas uma revolta de capitães só é possível numas Forças Armadas de que os generais tenham perdido o controlo – ou por falta de prestígio, ou por divisão ideológica –, e quando o espírito do tempo está maduro para a revolta e há um grupo organizado politicamente e determinado a aproveitar a janela de oportunidade. Assim, veio o 25 de Abril, na sequência do 16 de Março. E com o golpe de Estado começou a revolução.
O regime de Marcelo Caetano, na altura, também falava muito do “perigo da extrema-direita”; um alerta que soa sempre que “a situação” sente o seu domínio ameaçado e que a Esquerda quer tomar o poder.
Por cá, nas eleições de 10 de Março, houve uma resposta popular interessante: 50 deputados da perigosa “extrema-direita” nos 50 anos da revolução.
Mas nada que ensombre a festa, porque a extrema-esquerda, por reduzida que seja e esteja, continua a “cumprir Abril” em versão pós-moderna, fazendo aprovar leis disruptivas e impondo linhas vermelhas ao Centrão. Centrão que continua a dominar, vai para 48 anos.
Onde também se teme o “perigo da extrema-direita” é em Bruxelas. E foi precisamente para evitar que a “extrema-direita” perturbasse a ordem pública que a Conferência Nacional do Conservadorismo (NatCon) foi sendo consecutivamente cancelada, por prevenção.
E como perturbaria a ordem pública uma conferência que reunia um primeiro-ministro de um país da União Europeia, um ex-primeiro ministro e uma ex-ministra do Reino Unido, um candidato à presidência de França, vários deputados e intelectuais europeus, 600 pessoas ordeiras? Perturbando os activistas “antifas” que, perturbados com a eventualidade do Congresso, ameaçavam perturbar a ordem pública, manifestando-se na rua, junto ao local do iliberal evento. A polícia teria, evidentemente, de os proteger dos iliberais congressistas, impedindo que o Congresso se realizasse.
Foi precisamente por isso que Emir Kir, o autarca do distrito de Saint-Josse da capital belga, proibiu a reunião, não sem acrescentar que, fosse como fosse, a “extrema-direita” não era bem-vinda na sua cidade.
Depois de pressionar os directores dos hotéis que, imprudentemente, tinham concordado em acolher o Congresso, forçando à sua mudança de local por duas vezes, na terceira escolha, o temerário Hotel Claridge, a polícia teve mesmo de intervir: havia que evitar a todo o custo a emissão de “discurso de ódio” dos congressistas dentro de portas e que proteger a hipersensibilidade à ideia alheia das duas dúzias de democratas que, cá fora, exerciam a sua liberdade de expressão.
As intervenções dos primeiros-ministros da Itália, do Reino Unido e da própria Bélgica, exigindo que se repusesse a legalidade, puseram fim ao censório episódio, a lembrar o nosso saudoso PREC e a esclarecer-nos quanto ao verdadeiro paradeiro da “democracia iliberal” – então e agora.