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Pode a filosofia salvar o mundo? – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Mai 19, 2024

Um modo habitual de contar a história da filosofia consiste em descrever a sociedade ateniense do final do século V a.C. como corrompida pela presença de sofistas, que desprezavam a ideia de Verdade e vendiam o seu conhecimento para preparar os jovens para a política. Foi contra estes que Sócrates e Platão se posicionaram, o primeiro demonstrando que os sofistas não sabiam aquilo que diziam saber e o segundo opondo ao relativismo epistemológico as ideias puras de verdadeiro, bom e belo.

Trata-se de uma estratégia narrativa eficaz: usando a lógica de oposição entre bons e maus, reserva-se um lugar especial para a filosofia e para os filósofos, que seriam aqueles que repõem o amor pela sabedoria, pela verdade, pelo conhecimento. O problema é que esta história tem dois problemas.

O primeiro deles resulta de, ao remeter o nascimento da filosofia para Sócrates e, sobretudo, para Platão – a propósito de quem A. N. Whitehead disse que “a caracterização geral mais segura da tradição filosófica europeia é a de que consiste numa série de notas de rodapé a Platão” –, fazer esquecer o contributo dos filósofos pré-socráticos, como Tales e Anaximandro, mas em particular Heraclito e Parménides. Na verdade, a filosofia terá começado com eles e a interrogação “porquê algo em vez de nada?”, que hoje remetemos para aquilo que seria o domínio da física (só mais tarde a filosofia se tornaria meta-física).

O segundo e maior problema é que aquela narrativa tende a esconder um aspeto político fundamental: tanto Sócrates como Platão eram profundamente críticos da democracia, e era esta que justificava a existência de sofistas. Como a democracia ateniense consistia numa democracia direta, em que os cidadãos participavam de diversas formas, em particular na assembleia, o domínio da palavra e as capacidades de oratória tornavam-se fundamentais. E os sofistas ensinavam a arte da política, nomeadamente o uso da palavra e a capacidade de persuasão. Afinal, como Hannah Arendt chama a atenção, “os atenienses orgulhavam-se de, ao contrário dos bárbaros, conduzirem os seus assuntos políticos sob a forma do discurso e não da compulsão”.

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Assim, quando viramos aquela história da filosofia ao contrário, encontramos os “maus” como os agentes principais do regime democrático, enquanto os pais da filosofia surgem como opositores à democracia. Platão era especialmente claro neste posicionamento, construindo o seu argumento político a partir de um argumento epistemológico: como só os filósofos saíam da caverna e acediam ao mundo das ideias e conheciam a verdadeira realidade, apenas estes deveriam governar a cidade. Pelo contrário, a democracia é como um navio lançado ao mar que, em vez de conduzido pelo capitão, avança sem rumo certo segundo as opiniões dos tripulantes ignorantes. É daí que resulta o argumento do Rei-Filósofo – ou como Platão diz na Carta VII:

“os males não cessarão para os humanos antes que a raça dos puros e autênticos filósofos chegue ao poder ou antes que os chefes das cidades, por uma divina graça, se não ponham a filosofar verdadeiramente.”

A filosofia de tradição platónica assenta, então, nesta presunção de superioridade intelectual que lida mal com o regime democrático. Mas a ideia repete-se no século dos filósofos e das Luzes, que gerou apoio a déspotas iluminados e não a regimes democráticos. Os pais da democracia contemporânea recusavam qualquer apreço pela ideia de participação política universal; e mesmo John Stuart Mill, o mais simpático de todos os filósofos, defendeu o voto plural e o sufrágio capacitário.

Não podemos fugir ao fundo da questão: encontramos muitas vezes na filosofia uma predisposição para reivindicar um conhecimento superior ou, pelo menos, um conhecimento mais bem formado, e que tende a fazer com que os filósofos desconfiem do cidadão comum e do funcionamento da democracia. O perigo é evidente: acreditar que seguramos as tochas da razão pode levar-nos à sedução por receções animadas com tochas, como aconteceu com Heidegger.

Talvez a lição de Hegel nos possa precaver contra estas tentações: quando, no prefácio às Lições Fundamentais da Filosofia do Direito, cunhou a célebre imagem de que a coruja de Minerva só levanta voo ao entardecer, queria dizer que a filosofia chega sempre tarde para ensinar como o mundo deve ser. A função do filósofo não será, assim, mais do que a de pensar e compreender o mundo. Mas esta é uma atitude difícil para quem acredita ter um acesso privilegiado à verdade e, nessa medida, às soluções que corrigem os problemas do mundo. É esse impulso revolucionário que encontramos em Jean-Jacques Rousseau e Karl Marx, e que levou este último a cunhar a 11.ª tese de Feuerbach: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.”

Ora, este espírito parece animar cada vez mais a academia: uma crença quase pueril de que o intelectual tem uma missão especial na comunidade – mesmo que isso signifique ir contra a opinião maioritária (o que, curiosamente, acontece quase sempre). Afinal, como Platão ensinou, as pessoas têm apenas doxa – já os filósofos têm a Verdade. Mas não devemos esquecer as palavras de Arendt no texto que escreveu a propósito dos 80 anos de Heidegger:

“Nós, que desejamos honrar os pensadores, não podemos deixar de considerar surpreendente e talvez exasperante o facto de Platão e Heidegger, quando entraram nos assuntos humanos, se terem voltado para tiranos e Führers. Isto não deve ser imputado apenas às circunstâncias dos tempos e ainda menos ao caráter anterior, mas antes àquilo que os franceses chamam déformation professionelle. Pois a atração pelo tirânico pode ser demonstrada teoricamente em muitos dos grandes pensadores (Kant é a grande exceção).”

Pode ser tocante ver como alguns intelectuais se sentem impulsionados a sinalizar a virtude e avançar uma agenda que consideram ser pelo bem comum, mas talvez devamos ser mais humildes e menos predispostos a querer mudar o mundo de acordo com a nossa visão. Para que a magia da filosofia não nos faça esquecer o que realmente importa. É a lição que devemos a Heidegger: as suas ideias filosóficas, inegavelmente estimulantes, cativaram e continuam a cativar filósofos sem fim – mas é a desumanidade que demonstrou para com Husserl, seu mestre, que mais diz sobre si.

Considerando os perigos, o melhor seria esquecer a ideia de que a filosofia pode mudar o mundo. Provavelmente pode, provavelmente não da melhor maneira. Mas isso não significa que não tenha algo a contribuir: pode ajudar-nos a compreender o mundo que nos rodeia e, com esse voo tardio, ajudar-nos a conversar melhor sobre o que queremos para o mundo ao amanhecer.

PS: Porque a democracia é um tema inesgotável, a edição Braga Romana deste ano dedica-lhe uma conferência Tempus Fugit para explorar as suas raízes históricas e influências atuais no dia 22 de maio, e na qual participarei.



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