Entre Paris e Auvers-sur-Oise distam cerca de 52 quilómetros. Apesar dessa efémera distância, Auvers encontra-se localizada já em pleno Val-d’Oise, a sul do maravilhoso Parc Naturel Regional du Vexin Français. A proximidade com La Roche Guyon, quartel-general de Erwin Rommel, colocou Auvers na linha de progressão dos combates entre o exército alemão e os aliados pouco tempo depois do início da Operação Overlord em 1944. Apesar de ser palco de inúmeros combates e de acolher um dos mais activos braços da resistência, não são os traços dessa batalha que encontramos actualmente nas ruas de Auvers-sur-Oise.
É que há 134 anos travou-se aqui uma outra batalha. Tremenda e com consequências inimagináveis… Entre os meses de Maio e Julho de 1890, um só homem combateu um inimigo de dimensões incalculáveis e soçobrou sem glória nem misericórdia. Esse homem chamava-se Vincent Willem van Gogh e a batalha que travou contra a loucura, insidiosa e imparável, constitui um claro exemplo de como o estigma e o isolamento da doença mental, escondem, por vezes, uma genial singularidade. A sua vida ilustra na plenitude essa fina membrana que separa o génio da loucura. Esse estreito intervalo que dista entre o ‘frenesi divino’ Platónico e a Aristotélica ‘melancolia genial’.
Guiar a visita de um grupo ao fabuloso Musée d’Orsay constitui sempre um privilégio e uma oportunidade única para contextualizar um dos períodos mais apaixonantes da história da pintura europeia. No entanto, entrar na sala do 5.º piso dedicada ao pós-impressionismo e às icónicas obras de Vincent van Gogh encerra sempre um desafio pessoal por revelar um dos mais angustiantes retratos da terrível ironia da vida. Centenas de pessoas acotovelam-se em torno das obras de Van Gogh: seja do tremendo Portrait de l’artiste de 1889, revelador de um olhar perturbado e em plena convulsão; da fabulosa L’église d’Auvers-sur-Oise vue du chevet, pintada em plena ebulição mental entre 4 e 5 de Junho de 1890; ou ainda, do melancólico retrato do Docteur Paul Gachet, intrigante personagem que foi médico, pintor amador, homeopata interessado em quiromancia, e que foi pintado 50 dias antes do fatídico suicídio do pintor. Ao ver esta multidão tremenda, recordo sempre os versos de uma canção de 1981 dos The Stranglers – Everybody Loves You When You’re Dead:
When you’re alive they won’t care what you said
What you deserve and all the blood you bled
‘Cause everybody loves you when you’re dead…
Quem se contorce em frente das obras do pintor para tirar um banal selfie, não se apercebe da angústia latente que as habita. Cada uma representa uma cena de guerra. Uma batalha sangrenta. Uma ruína da consciência. Um apelo de misericórdia a uma das mais terríveis tragédias que a condição humana por vezes reserva: o abismo da loucura. Toda a sua vida constituiu uma infinda tragédia, e de facto, o pleno reconhecimento surgiu apenas após a sua morte. E que reconhecimento… E, no entanto, as obras, penduradas nas paredes do museu parecem revelar uma outra história. Rejubilam no vigor nervoso das pinceladas, na frescura das cores, na dimensão pastoral da visão do artista. Parecem desligadas do seu páthos. São profundamente belas…
Este fenómeno afigura-se paradoxal, mas de facto, não é. Martin Heidegger explica-nos: «Assim, as próprias obras encontram-se e estão penduradas nas colecções e nas exposições. Mas estarão elas porventura aqui em si próprias, como as obras que elas mesmas são, ou não estarão antes aqui como objectos do funcionamento das coisas no mundo da arte?». Os objectos que vemos são isso mesmo. Despojos de uma guerra travada na mente perturbada de um artista. E como são belos esses despojos. Ruínas de uma sanidade a eclipsar-se lentamente. Flores nascidas nos interstícios da loucura.
Nesse distante mês de Junho de 1890, quem observava esse homem tímido e vacilante a caminhar todos os dias entre o Auberge Ravoux e os campos adjacentes, carregado com as telas, a mala das tintas e o cavalete, não imaginava a batalha tremenda que se desenrolava dentro de si. Imaginava menos ainda que esse singelo e vacilante homem, iria tornar-se num dos mais icónicos e revolucionários artistas de sempre. Os últimos 70 dias de vida de Vincent em Auver-sur-Oise foram profundamente angustiantes, mas tremendamente produtivos. Nem o melancólico Docteur Paul Gachet, genuína “expressão desolada do nosso tempo” nas palavras do próprio artista, conseguiu mudar o curso de um destino que se afigurava inevitável. Seguindo os conselhos deste para trabalhar desalmadamente, Van Gogh irá produzir 74 pinturas e 33 desenhos entre o dia 20 de Maio e o fatídico dia 27 de Julho. Em pouco mais de dois meses, o artista irá produzir algumas das suas obras mais icónicas, marcadas por uma forte tensão psicológica, mas plenas de inovação.
Auver-sur-Oise constitui uma belíssima surpresa a ser descoberta precisamente nos meses desta fatídica batalha, Maio, Junho e Julho. O trigo ainda está verde. O céu de um azul matizado de violeta e chumbo. No ar, pairam ainda os resquícios desta tremenda batalha. Não é uma viagem… É uma peregrinação!