Nem toda a gente lida bem com os dias de calor Lisboa. Há quem desespere por viver numa casa antiga, com pouco isolamento. Quem gaste rios de dinheiro em sistemas de ar condicionado. E quem decida enfiar gelo no corpo para ver se a temperatura desce. Alice Rohrwacher, realizadora italiana em contínua ascensão por esse cinema europeu fora, tem um novo filme, La Quimera, que se estreia esta quinta-feira. O Observador conversou com a cineasta italiana (com pai alemão, daí o apelido peculiar), nos escritórios da Midas Filmes, no Chiado num dia de muito calor. A realizadora de filmes como Le Pupille (2023) — que chegou a estar nomeado aos Óscares, ou de Feliz Como Lázaro, a sua terceira longa-metragem, ganhou o prémio de Melhor Argumento em Cannes’18 — tinha as bochechas vermelhas. Estava com calor. Muiot calor. Mas não se deixou inquietar. Conserva um certo olhar ingénuo, de quem não aparenta estar preocupada com o que a rodeia, como o calor abrasador do dia. É assim também o seu cinema, com um universo encantado, muito personalizado e pessoal, de personagens singulares.
La Quimera situa-se na Toscânia nos anos 1980. Acompanhamos a história de um moribundo inglês, Arthur (interpretado por Josh O’Connor), que anda perdido em busca da mulher, que morreu, e que se reencontra com o bando de saqueadores de artefactos (tombarolis) a que em tempos pertenceu. O filme, que é sempre político, como todo o cinema de Rohrwacher, reflete sobre a memória coletiva de um país, misturando o passado e o presente, e a importância dos artefactos, que conseguem contar uma história transversal a qualquer geração. Tanto em La Quimera como nas outras obras de Rohrwacher, há sempre algo que parece faltar no resto do cinema: tempo. “Vivemos numa época cheia de imagens, de rapidez. A história não pode devorá-las. Têm de ter o seu processo de crescimento. Gosto de tratar da imagem como uma criança, cuidar dela. Brincar com ela, não é preciso ser tão sério. Dar-lhe indicações para crescer. Daí a importância do tempo para trabalhar e construir as imagens”, conta-nos.
[trailer oficial do filme “La Quimera”, filme de Alice Rohrwacher:]
A realizadora, que nasceu também na Toscânia, sem que tenha propriamente noção, é pitoresca na sua cinematografia — com a monotonia de conteúdos audiovisuais, pitoresco pode ser alterado para original. Foi assim com Feliz como Lázaro, ao dar-nos a história de uma comunidade rural que é enganada por um aristocrata; e é assim com La Quimera, ao dar-nos estes saqueadores de tumbas que têm tanto de infantil como de muito trágico. Alice Rohrwacher conhece bem o campo. As longas noites de viagem com os pais. As abelhas. Os negócios de família. Conserva esses momentos também no seu cinema e não se deixa deslumbrar só porque, por exemplo, Martin Scorsese decidiu tornar-se produtor executivo num dos seus filmes. Não é saudosista, gosta de olhar para a frente, mas confundindo o passado e o presente. Só tem é saudades de uma coisa: “Tenho saudades de futuro. Do que pode ser o futuro. Que imagino que seja menos previsível do que nos querem fazer pensar. Menos previsível do que a imagem perfeita que nos colocam na cabeça”.
Apesar do pitoresco, não deixa de ter respostas que podiam constar de uma manchete que daria pano para mangas. Sobretudo quando em causa estão as transformações sociais e económicas de cidades italianas ou mesmo de Lisboa, lugar onde estudou em Erasmus e onde chegou a fazer um curso de documentário. “É tudo uma moda. Como os ricos que iam comprar objetos de arte antiga porque estavam na moda nos anos 80 e 90. Tinham imensa vontade de adquirir a alma daquela civilização. E esse período passou. Há um paralelo com Lisboa, onde chegam pessoas e pessoas que devoram o espírito da cidade. E, claro, mais uma vez, tudo acaba. Acabaram os egípcios, os romanos, os gregos, o capitalismo”. O capitalismo? Se o cinema da italiana nos dá encanto — ou “desencanto sobre o encanto” –, a realizadora deixa-nos a pensar sobre o que diz. Segundo a história universal, a quimera é um ser mítico de duas cabeças. Sem se justificar, Alice Rohrwacher mostrou conseguir ser duas pessoas ao mesmo tempo. A cineasta de bochechas rosadas que nos leva para outro mundo e a mulher com respostas que precisariam de anos e anos de investigação para chegar a uma resposta.