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“A História pode devorar muita coisa, mas não pode devorar as imagens” – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Jun 5, 2024

Nem toda a gente lida bem com os dias de calor Lisboa. Há quem desespere por viver numa casa antiga, com pouco isolamento. Quem gaste rios de dinheiro em sistemas de ar condicionado. E quem decida enfiar gelo no corpo para ver se a temperatura desce. Alice Rohrwacher, realizadora italiana em contínua ascensão por esse cinema europeu fora, tem um novo filme, La Quimera, que se estreia esta quinta-feira. O Observador conversou com a cineasta italiana (com pai alemão, daí o apelido peculiar), nos escritórios da Midas Filmes, no Chiado num dia de muito calor. A realizadora de filmes como Le Pupille (2023) — que chegou a estar nomeado aos Óscares, ou de Feliz Como Lázaro, a sua terceira longa-metragem, ganhou o prémio de Melhor Argumento em Cannes’18 — tinha as bochechas vermelhas. Estava com calor. Muiot calor. Mas não se deixou inquietar. Conserva um certo olhar ingénuo, de quem não aparenta estar preocupada com o que a rodeia, como o calor abrasador do dia. É assim também o seu cinema, com um universo encantado, muito personalizado e pessoal, de personagens singulares.

La Quimera situa-se na Toscânia nos anos 1980. Acompanhamos a história de um moribundo inglês, Arthur (interpretado por Josh O’Connor), que anda perdido em busca da mulher, que morreu, e que se reencontra com o bando de saqueadores de artefactos (tombarolis) a que em tempos pertenceu. O filme, que é sempre político, como todo o cinema de Rohrwacher, reflete sobre a memória coletiva de um país, misturando o passado e o presente, e a importância dos artefactos, que conseguem contar uma história transversal a qualquer geração. Tanto em La Quimera como nas outras obras de Rohrwacher, há sempre algo que parece faltar no resto do cinema: tempo. “Vivemos numa época cheia de imagens, de rapidez. A história não pode devorá-las. Têm de ter o seu processo de crescimento. Gosto de tratar da imagem como uma criança, cuidar dela. Brincar com ela, não é preciso ser tão sério. Dar-lhe indicações para crescer. Daí a importância do tempo para trabalhar e construir as imagens”, conta-nos.

[trailer oficial do filme “La Quimera”, filme de Alice Rohrwacher:]

A realizadora, que nasceu também na Toscânia, sem que tenha propriamente noção, é pitoresca na sua cinematografia — com a monotonia de conteúdos audiovisuais, pitoresco pode ser alterado para original. Foi assim com Feliz como Lázaro, ao dar-nos a história de uma comunidade rural que é enganada por um aristocrata; e é assim com La Quimera, ao dar-nos estes saqueadores de tumbas que têm tanto de infantil como de muito trágico. Alice Rohrwacher conhece bem o campo. As longas noites de viagem com os pais. As abelhas. Os negócios de família. Conserva esses momentos também no seu cinema e não se deixa deslumbrar só porque, por exemplo, Martin Scorsese decidiu tornar-se produtor executivo num dos seus filmes. Não é saudosista, gosta de olhar para a frente, mas confundindo o passado e o presente. Só tem é saudades de uma coisa: “Tenho saudades de futuro. Do que pode ser o futuro. Que imagino que seja menos previsível do que nos querem fazer pensar. Menos previsível do que a imagem perfeita que nos colocam na cabeça”.

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Apesar do pitoresco, não deixa de ter respostas que podiam constar de uma manchete que daria pano para mangas. Sobretudo quando em causa estão as transformações sociais e económicas de cidades italianas ou mesmo de Lisboa, lugar onde estudou em Erasmus e onde chegou a fazer um curso de documentário. “É tudo uma moda. Como os ricos que iam comprar objetos de arte antiga porque estavam na moda nos anos 80 e 90. Tinham imensa vontade de adquirir a alma daquela civilização. E esse período passou. Há um paralelo com Lisboa, onde chegam pessoas e pessoas que devoram o espírito da cidade. E, claro, mais uma vez, tudo acaba. Acabaram os egípcios, os romanos, os gregos, o capitalismo”. O capitalismo? Se o cinema da italiana nos dá encanto — ou “desencanto sobre o encanto” –, a realizadora deixa-nos a pensar sobre o que diz. Segundo a história universal, a quimera é um ser mítico de duas cabeças. Sem se justificar, Alice Rohrwacher mostrou conseguir ser duas pessoas ao mesmo tempo. A cineasta de bochechas rosadas que nos leva para outro mundo e a mulher com respostas que precisariam de anos e anos de investigação para chegar a uma resposta.



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