Enviado especial do Observador em Paris, França
Até na preparação das provas existe uma organização especial no Stade de France. Na antecâmara das séries de qualificação dos 400 metros barreiras, que terão aquela que é uma das finais mais esperadas entre Femke Bol (que teve uma última passagem na decisão dos 4×400 mistos para o ouro que ficará na histórias de Paris-2024) e Sydney McLaughlin-Levrone, todas as barreiras dos 110 metros foram recolhidas de forma quase sincronizada por dez voluntários. Tiravam a primeira, colocavam no carrinho, iam para a segunda, olhavam uns para os outros, pegavam na barreira, levava, outra vez. Com os carrinhos cheios, era hora de começar a distribuir por todos os pontos da pista. Coloca, olha-se, agarra-se no próximo, junta-se mais. É também por isso que, a não ser que exista um qualquer imprevisto, todas as provas cumprem sempre horários.
Já depois de Lorene Bazolo ter entrado no apuramento dos 200 metros, caindo para as repescagens com um quinto lugar na série 1 a 23,10, era vez de Fatoumata Diallo entrar em ação às 12h35 parisienses (mesmo em ponto). As atletas fazem aquela zona de uma ponta à outra da parte da pista que tem os últimos 100 metros até à partida sem serem anunciadas quando entram, algo que acontece em meias-finais e finais tal como na natação, fazem a preparação de bloco e só aí são anunciadas uma a uma perante um Stade de France que tem enchido e continuará a encher de manhã e à noite. Aos 24 anos, a portuguesa que vive em Paris até perto do recinto fazia a sua estreia em Jogos Olímpicos. Essa era a primeira vitória, essa não seria a única vitória.
Nascida na Guiné, Fatoumata começou no atletismo através do desporto escolar também para tentar fugir a uma infância traumática onde cresceu alguns anos sem os pais, que tiveram de viajar para a Europa. “Vim de África, não tive uma infância como todos os outros. Em África já era adulta”, contou ao site oficial dos Jogos. “A mentalidade africana consegue-nos fazer ultrapassar tudo”, acrescentou também, salientando que foi também fazendo trabalho com um psicólogo para estabilizar depois desses anos iniciais. O início mais a sério foi já em Olhão, para onde se tinha mudado, na Escola Dr. Alberto Iria com 12 anos, através de uma primeira abordagem do técnico Paulo Murta. Foi para o Pechão (só agora mais recentemente se transferiu para o Benfica) e encontrou no atletismo uma fuga aos tempos difíceis que passara. “Transformei toda esta raiva na modalidade, sempre a trabalhar, trabalhar e a não ligar ao que os outros dizem”, contou.
Em 2018, a avó sofreu um AVC numa vista aos netos e Fatoumata foi entrando numa fase de novo difícil onde nem as corridas que fazia entre treinos, hospital e escola pareciam chegar para evitar lesões e uma fase menos conseguida da carreira. No ano seguinte, procurando quase uma reinvenção como atleta, seguiu com os pais para Paris, onde se encontra desde então com um novo treinador, Joel Batori. Os resultados ficaram à vista este ano, na antecâmara dos Jogos: depois de um 26.º lugar nos Mundiais de 2023 com 56,03, baixou a melhor marca pessoal para 55,57 e bateu o recorde nacional que pertencia a Vera Barbosa nas meias-finais dos últimos Europeus, com a marca de 54,65 que lhe valeu também a qualificação olímpica.
Esta manhã, tudo fez ainda mais sentido. Fatoumata Diallo chegou à zona mista a pedir se a conversa podia ser breve. Estava “cheia de fome”, admitiu, o que lhe causava até algumas dores de cabeça. Uns minutos antes, na série 1 da qualificação para as meias-finais dos 400 metros barreiras, tinha acabado de fazer a sua segunda melhor marca pessoal e nacional de sempre com 54,75, apenas atrás da jamaicana Rushell Clayton, que partia no segundo lugar do ranking mundial (54,32). O apuramento para as meias-finais, que apenas se realizam na noite de terça-feira, estava confirmado de forma direta sem repescagens.
“Segunda melhor marca de sempre, pois é… Estou muito contente, estava um pouco nervosa mas nada a ver com a concorrência porque adoro correr com as melhores, adoro estar aqui. Era mais comigo mesma, tocar na barreira, cair, não estar a controlar os nervos e fazer uma porcaria… Mas estou muito contente, o sonho está a tornar-se realidade. O objetivo era chegar às meias-finais e consegui, agora é continuar para fazer ainda melhor e tentar ir à final. Mais descontraída? Vou estar sempre nervosa, é normal, mas tenho estado a aprender mais sobre mim nestas provas com os grandes. Temos de controlar os nervos, o trabalho já está feito e aqui não muda nada. É preciso manter o controlo e aproveitar o melhor possível”, começou por referir na zona mista, enquanto iam decorrendo as outras séries da distância.
“Consigo aproximar-me mais do recorde nacional ou até bater o recorde nacional mas cada corrida, cada concurso é diferente. Espero sair daqui não com qualquer arrependimento mas a dizer que dei tudo o que podia. Isso é o que mais quero que aconteça. Tem um gosto especial também correr aqui em Paris, eu vivo aqui perto, é como se fosse francesa, a minha família toda está aqui e queria mostrar porque é que ando a sacrificar-me todos os dias, porque ando a trabalhar, que não treinei quatro anos para nada”, concluiu.