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Climas, estalajadeiras, livros (e mais desabafos) – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Ago 6, 2024

1 É intermitente: no oeste vive-se entre as brumas da Escócia e céus azuis transparentes sob os quais há calor. Estamos habituados: é assim. Embora seja transtornante nunca saber com que se conta, sabemos que esta – como dizer? – circunstância meteorológica, estacionou nesta região para todo o sempre. (Não, não são as alterações climáticas, é um exclusivo).

Além da inverosímil diferença entre podermos passar uma tarde outonal de camisola vestida e no dia seguinte mergulhar em ondas atlânticas de alto luxo, há uma inverosimilhança mais caprichosa ainda: sair-se de casa num dia de sol radioso, chegar a uma praia muito perto e não conseguir ver o mar, confundido com a espessura do nevoeiro. Ou o contrário: calçar umas botas para vencer a humidade molhada do jardim e de repente ligarem-nos alguns amigos beneméritos “há bandeira verde na praia e está muito calor”. É o tal “exclusivo”

O pintor Almada Negreiros – julgo já ter contado isto – apesar de tudo tinha mais sorte: muito amigo de um tio-avô com casa a 50 metros da nossa, vinha passar uns dias estivais que muito lhe apraziam mas escrevia espantado para Lisboa “aqui o verão nunca nasce antes do meio dia”. Ao menos, mesmo preguiçoso e desfasado do relógio, o verão… nascia-“lhe”. Nós, é conforme. E há dias em que por pouco não se acende a lareira

Toda esta litania que terá entediado o leitor, para dizer que as caprichosas intermitências climáticas, têm ao menos uma vantagem: numa casa rebuliçosa ocasionam súbitas ilhas de sossego. A tribo vai “lá para baixo”, em cima, há uma aparência de normalidade. As ilhas são escassas para quem continua com compromissos profissionais, mas é como o clima: também nos habituamos.

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Por agora esta estalajadeira atirará para um desejado entre parêntesis, a casa, os compromissos, o clima, os supermercados, os netos e os primos e primas dos netos, e levantará voo para outro poiso no Atlântico. Um sossegado momento. Até a chegada de nova leva neste Agosto que corre.

2 Sossego não é de modo algum aquilo a que se terá entregue Nuno Gonçalo Poças – cronista do Observador – na tarefa imensa que é a sua biografia de Francisco Lucas Pires que aqui citei na passada semana, “O Príncipe da Democracia” (D. Quixote).

Trabalho de casa, duro, exigente, permanente, na procura do personagem. Através do que leu, estudou, investigou, claro. Mas também do que soube ouvir e aprender com os interlocutores “certos” com quem foi ter. Para além da família, gente que em diversas estações politicas e circunstâncias pessoais, cívicas, académicas, parlamentares, politicas, de Lucas Pires, com ele se cruzaram, o defrontaram, a ele se juntaram, dele se afastaram. Mas que se lembram e “contam”. Que souberam contar”. Julgo porém que há também muito de Nuno Gonçalo Poças nestas páginas para além da capacidade intelectual para as ter escrito: há o seu próprio pensamento sobre a politica, acompanhando com convicção o de Lucas Pires e seguindo com igual convicção e aplauso essa trajectória. Seja na sua graça pessoal, no brilho intelectual, no fulgor (ah “esse” tão amado Grupo de Ofir…”) na determinação da sua vontade política; mas seja também na ambiguidade que existiu ou na incoerência que também houve (e lembro-me da perplexidade entristecida em que elas me deixaram na altura).

Seja como for o que interessa aqui é o modo como o autor foi totalmente interceptado pela figura de Francisco Lucas Pires para depois se apoderar dela. Com um extremo rigor, minúcia, detalhe; com um quase obsessivo fito de juntar toda a informação, sobre um político de quem queria saber mais ou saber tudo. Como ele me disse (desarmantemente) uma vez “a ideia de escrever a biografia surgiu da vontade de a ler. Como à época, não existia nenhuma, resolvi escrevê-la para me permitir lê-la depois.”

Lembro-me de boa quantidade destes factos por os ter testemunhado mas apesar disso e já tantos anos depois, Lucas Pires e o seu trajecto incomum ficaram mais claros e mais recortados sobre a sua história e a sua época. Um dia perguntei ao Nuno Gonçalo Poças o que o tinha aproximado de Francisco Lucas Pires, nesta longa e tão circunstanciada viagem com ele. A resposta foi inequívoca:

“Com as suas falhas, os seus erros, ele foi o grande político-intelectual português, e chegou a sê-lo mesmo à escala europeia. Houve grandes políticos em Portugal nos últimos 50 anos. Houve intelectuais. Mas nenhum como ele cumulou as duas características e de forma tão relevante. É um certo tipo de político que não existe hoje, mas de que talvez o país precise. Falar dele não vale só a pena, como pode mesmo tratar-se de uma necessidade.”

Hoje? Sim:

“Lucas Pires podia, hoje, ser a referência política, ideológica, filosófica, senatorial e intelectual de um espectro largo que caiu nalguma orfandade e que vive muito dependente de figuras providenciais. Lucas Pires recusava para si próprio essa ideia providencial, via mais autoridade nas ideias do que nos chefes. Isso podia ter feito de si algo que o país nunca teve ou teve muito pouco: um Presidente da República liderante para o país, mais do que para a sua área política, mesmo num sistema que não é presidencialista.”

Poderia?

3A Cultura como Enigma” é o que surpreendentemente nos sugere Guilherme d’Oliveira Martins. Também aqui mencionei há dias este seu inspirador livro (Gradiva) prometendo voltar a ele. Referi-o como um “extraordinário livro de crónicas” que é o que ele é, antes do mais. Mas tanto mais extraordinário quanto nem se lê assim, e tratando-se do “já lido” porque publicado anteriormente em jornais, poderia ter causado preguiça ou distancia. É o oposto: lê-lo é um regalo.

Cada crónica vale por si, dispensando o “amparo” da presença das outras; a escolha de as juntar e o acerto literário dessa seleção, tornaram automaticamente mais rico o seu tão diversificado conteúdo; essa espantosa diversidade de temas e as suas não menos espantosas abordagens levam-nos connosco pela mão: a natureza humana, a história, a cultura, as civilizações, a memória, Deus, estão sempre em pano de fundo, ou á boca de cena. São, têm sido, o seu instrumento de escrita. Talvez porque haja em Guilherme d’Oliveira Martins qualquer coisa que releva de uma pessoalíssima forma de encarar a cultura e a história como vivências obrigatórias e obrigatoriamente partilháveis: além de ser um dos nossos mais sólidos e completos intelectuais, é um excepcional “transmissor” e muitas vezes, quase sempre, caleidoscópio. É evidente que a chave desta escrita está no próprio autor, na erudição que transmite sem alarde, no imenso saber que expõe naturalmente, nas pessoas que o interpelaram e tão bem define, nos mundos que conheceu, nos cargos que exerceu cívica e politicamente e de tão diversa natureza e eis o que nos desvenda uma boa parte deste cidadão exemplar: ter dado boa conta de si na resposta a diversas chamadas. (Ah já me faltava esta “cláusula” particular: Guilherme d’Oliveira Martins ter feito tudo isto – escrever, intervir, governar, debater, apresentar, dirigir… em vários sítios ao mesmo tempo. Julgo já não haver dúvidas ser o nosso autor o único ser humano neste vasto mundo abençoado com o dom da ubiquidade.)

Desde que saiu o livro que me encantou a palavra enigma. Perguntei-lhe o porquê desta fortíssima, poderosa palavra, á roda da qual eu andava há meses: porquê?

“Porquê Enigma? A leitura e a escrita permitem-nos um diálogo extraordinário com as gerações que nos antecederam. Tomamos contacto, através dos livros e das bibliotecas, com quem há muito nos deixou, mas também com a memória próxima de quem continua a ser para nós referência próxima. Sim, é Deus que continua a animar-nos e a dialogar connosco. Através da memória, vivemos um romance vivo, com personagens que continuam connosco. O quadro da Menez , na capa, liga pensamento e livros. O maior valor da cultura é o de uma viagem em que os outros nos permitem encontrarmo-nos e encontrar o mundo.”

Pode transmitir-se melhor? Não.

PS1: Novo desabafo deprimente: então o futuro Presidente do Conselho Europeu, já em princípio de malas aviadas e com nova morada belga a sua espera, entra-nos agora casa dentro num triplo salto “apresentador-entrevistador-comentador”, em despropositadíssimas charlas televisivas?

Deslizando com o à vontade pelo curso da política interna — a qual deixou de lhe dizer directamente respeito publicamente — e fazendo recomendações ao partido que acabou de liderar ? O gesto confere-me inesperadamente dois direitos: o de considerar que ele quer trucidar politicamente Pedro Nuno Santos, e outro mais embaraçoso: o de constatar que António Costa não compreendeu que as suas funções de amanhã, já o deviam automaticamente ter colocado hoje, num outro e mais focado, patamar de intervenções, escolhas e actuações.

PS2: Desabafo de encantamento: um dos melhores “intervalos” que tive neste verão afadigado foram dois e ambos musicais: no Festival dos Capuchos, dirigido pelo músico Filipe Pinto Ribeiro, excelente pianista, e num cenário onde o recente restauro do Convento nos reconciliava com o nosso património – ouvimos a sublime Elisabeth Leonskaya. Tocava a solo, numa sala que por vezes suspendia a respiração e num dos mais exaltantes, românticos, melancólicos, doces, duros, diálogos entre uma pianista e o seu piano, a que jamais assisti. Inesquecível. (E seguido de ceia com a pianista saboreando um nacional “prego”, numa esplanada sobre o areal da Caparica. Outra vez inesquecível.)

O segundo momento foi há dias no “Verão Clássico – Festival e Academia” no picadeiro do antigo Museu dos Coches. Uma surpresa a reter e a mimar, em plena Lisboa estival. Entre Dvořák e Schumann fiquei com o sexteto para piano de Felix Mendelssohn, magnificamente tocado por Filipe Pinto Ribeiro (que também assume a direção, artística e pedagógica, desta pérola lisboeta.) Estudado, vivendo e tocando muito no estrangeiro – onde continua a passar boa parte do ano –, Filipe move se com facilidade e qualidade entre colegas, intérpretes, maestros, solistas, de gabarito musical internacional, a quem soube acenar com Portugal como destino musical. E eles vieram. O espectáculo teve um altíssimo nível artístico. Voltarão. É bom saber estas coisas. E sobretudo poder contar estas coisas (nada deprimentes).





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